E Deus não acudiu ninguém | Conceição Rodrigues

por Rejane Gonçalves__



             
Conceição Rodrigues nos acode, sim, deveras nos acode, com sua escrita entranhada, montada no mais longínquo dessa coisa a que chamamos ‘alma’, peregrina de caminhos marginais, rodopiando nesse estupor de conexões plantadas no cérebro, esgalhadas feito árvores antigas, mas envoltas em seiva do agora, a escorrer resinosa por todos os caules; tudo supostamente às claras, na verdade, tudo concentrado dentro de um mundo penumbroso, onde tateamos, tropeçamos, quando não, detemo-nos, de fato, estacamos, na intenção de nos livrarmos das amarras, único jeito de refazer o caminho e continuar. Enquanto esse aprendizado de leitura expande-se, descobrimos que estivemos sempre ali, que a nossa caminhada, de degredados filhos de Eva, dá-se justamente nesses porões, que o contar, o dizer de Conceição Rodrigues, de nós se apropriou; se somos passivos observadores, não deixa de ter sido nossa a escolha (um caso para o malfadado livre arbítrio e suas perspectivas contaminadas), de olho grande num deslocamento mais cômodo. Caso tenhamos decidido abdicar da viseira, depois de tê-la finalmente abaixado, teremos que estar comprometidos com o ver, o enxergar, ser mais, um pouco mais do que somos, para proporcionar a nós mesmo mudanças, ainda que sutis, em nossas formas diversas, por vezes tacanhas, de ser; que independentemente da ausência de entendimento, da possível discordância, da rejeição ante a nudez da verdade, se isto se der, que não vigore o sentimento de desistência, e sim, sobreviva a sede de perseguição da busca, tenaz e obsedante, única forma de nos situarmos humanamente, de estar e ser. Ao findarmos a leitura, ela nos devolve — mudados — para nossa tão banal realidade comezinha, e percebermos, não sem pesar, que nós, seres ‘normais’, pertencentes ao dia que amanhece e anoitece igual, somos também aqueles que vagam pelas estâncias brutais de lá, protagonistas de histórias cruentas, narradas com a destreza de quem sabe que espaço deve ocupar; que dimensões carecem de ser tocadas; que palavras constituem-se imprescindíveis ao desenho deste ou daquele bordado; que ritmo harmonizará os tons, os sons, os cheiros, os gemidos, os dizeres daquela criação, para que ela seja verdadeira, contundente e bela. Continua, pois, leitor, cumprindo teu papel de viajante por esse outro mundo, dono do teu eu — inteiro — embora partido, embora cindido pela experiência, pelo saber que te coube como legado nessa viagem. Lembra-te de que adquiriste, ainda, se bem apreendestes algo dos rituais de locomoção, o compromisso de acudir deus nesse teu périplo; ele, personagem exposto a um outro tipo de criação que o confronta e cobra, exige, dele, envolvimento, no mínimo, uma mão a esmurrar três vezes o peito: mea culpa, mea maxima culpa, negligenciei a paleta de cores dos quadros da galeria primeva, a que, borrada, contaminou tantas outras. Caberia a este nostálgico deus, tão profundamente adormecido, de súbito, acordar, voltar, num átimo, dos confins deste torpor, pôr-se em vigília e acudir-nos, enfim. Ele não o fará, pois que também ali se encontra — preso. A mão estendida pertence à escritora, é ela quem fala, é dela o dizer, cabe a ela nos acudir. E ela o faz. Já disse que ler Conceição Rodrigues é nos obrigar a ser mais, quando já é tão pesado ser. Eu leio, cada dia com mais gosto, porque há determinados pesos que precisam pender sobre nossas cabeças, justamente, para nos mantermos eretos, conscientes do prumo. A leveza do peso é essa consciência. 



Conceição Rodrigues nasceu em Arcoverde, portal do sertão pernambucano, mas viveu a maior parte do tempo em Recife, onde mora até hoje. É graduada em Letras e tem especialização em Literatura. Leciona na rede pública de ensino. Recebeu menção honrosa no III Prêmio Pernambuco de Literatura com o livro de contos “Corda para nós”, e no IV Prêmio Pernambuco de Literatura recebeu menção honrosa com o romance “323”. Trabalhou como assistente de Raimundo Carrero na Oficina de Criação Literária- UBE. Organiza e participa de antologias. Faz assessoria em produção textual em diversos gêneros e áreas. Publicou em 2020 “Molhada até os ossos” e “Os dedos das santas costumam faiscar”, livros de poemas, pela Editora Patuá. Seu próximo lançamento é  "e deus não acudiu ningém" E-mail: cecitha7777@gmail.com



Rejane Gonçalves, cidadã do século passado, nasceu em Camocim de São Félix, Pernambuco, hoje mora em Olinda. Tem formação em Letras. Publicou dois livros de contos (Escrevo para dinossauros e Estreitas amplidões) pela Editora Confraria do Vento, ambos foram semifinalistas do Prêmio Oceanos - 2017, 2020, respectivamente.