por Raphael Cerqueira__
Chego em casa, encontro a papelada espalhada na mesa.
— Quê isso?
A mãe vem enxugando as mãos no pano de prato:
— Ah, a doutora Edna, filha do Chico Cachaça, passou inda agorinha aqui, te procurando.
Olho novamente os adesivos e panfletos, todos com fotos de velhas raposas da política:
— O que ela queria comigo?
Pergunta retórica, como se diz literariamente: o sorriso afetado no santinho que tenho entre os dedos já diz tudo.
— Doutora Edna tá vindo candidata a vereadora. Sentou aí, contou dos projetos dela, falou de como é importante eleger as mulheres pra câmara... Falou daquele jeito empolado, cê sabe como é, e muita coisa num entendi direito.
— E veio pedir nosso voto.
— Aham. Falou que conta com a gente, que não esqueceu que cês fizeram o primeiro grau junto. Me pediu pra te passar o número dela. É claro que eu não ia falar que a gente já tem nosso vereador, né, ia ser falta de educação com a moça.
— Falta de educação é essa criatura bater na casa dos outros, ainda mais na hora do almoço, pra encher o saco pedindo voto. A senhora viu só que ridículo o que tá escrito aqui nesse santinho?
— Não, ela largou tudo aí e eu corri pra tirar o arroz do fogo.
VOTE NUMA MULHER DO POVO, VOTE DRA. EDNA REIS (CACHAÇA). Abaixo, o número e o nome do partido também em letras alaranjadas.
A mãe riu do jeito como li.
— O que as pessoas não fazem pra ganhar voto, é impressionante. Na escola, vivia brigando e xingando quando a chamavam de Cachaça. Uma vez sentou uma pedrada na testa de um menino porque ele desenhou um tonel no quadro e rabiscou várias vezes a palavra cachaça em volta.
— Eu lembro do pai dela vindo desabalado lá do alambique, naquela caminhonete velha dele, pra acudir o menino. Tadinho, gritava se esvaindo em sangue. Levou uns sete pontos no hospital. Ah, o Chico Cachaça era um homem tão bom, mas penou com o gênio da filha.
— E ela odiava que o chamassem assim. Dava faniquito, brigava com meio-mundo. Acho que tinha vergonha do pai, ou do apelido dele, sei lá… E agora, pra faturar uns votos, posa de popular e assume o apelido que sempre renegou. Isso é hipocrisia.
— Coisa de criança, filho, nem lembra mais.
— Que não lembra o quê. Não faz muito tempo arrumou um salseiro lá no fórum porque um colega do Juizado a chamou de Doutora Cachaça. Ih, deu uma confusão! Ameaçou de representar contra ele na direção do foro e na corregedoria, gritou que é doutora advogada e que exige respeito... E agora assume em público o apelido, essa é boa! Ó o que eu faço com essas porcarias, ó.
Amasso a papelada inútil, jogo na lixeira com o santinho. A mãe, conferindo o ponto do angu, meneia a cabeça:
— Num tem jeito com você, filho, num tem jeito mesmo.
Raphael Cerqueira Silva, é mineiro, graduado em Direito e História, servidor público, escritor. Publicou Confissões (Porto de Lenha Editora) e A vida segue (Caravana Grupo Editorial). Publica crônicas nas revistas Conhece-te e Viceja