por Alexandra Vieira de Almeida__
Leonardo Vieira de Almeida, saudoso pesquisador das Letras, em sua obra Veredas do grande conto, desenvolveu uma pesquisa minuciosa em que apontava a longa tradição de contar histórias em meio a uma estrutura romanesca, ressaltando o fato de Grande sertão: veredas se traduzir como uma obra de contos.
O lugar das palavras, de Valéria Martins, é a estreia da escritora na ficção literária. Pleno de histórias marcantes e variadas, cujo eixo temático é o papel do escritor em nossa sociedade, a partir de reflexões sobre questões como: mercado editorial, prêmios literários, leitura e outros assuntos, de igual interesse no reino árduo da seara literária. A autora, valendo-se da tradição horaciana, nos lembra do conceito “ensina, deleitando”. Por meio de seu livro, suscita no leitor a oportunidade de um aprendizado significativo sobre problemas relevantes e polêmicos pertinentes ao fazer literário e a tudo que envolve o mecanismo das palavras. Isso já fica bem explicitado a partir do título, levando os leitores a adentrarem no universo da literatura, no qual o narrador-personagem Rafael tece, num viés teórico e ensaístico, comentários sobre a própria criação literária. Além da teoria literária encontrada no livro, Valéria Martins é uma contadora de boas histórias, com temáticas variadas, mesclando a unidade e a pluralidade de vozes narrativas. Como escreveu Walter Benjamin, no seu ensaio “O narrador”, contar histórias é o ideal quando se fala no gênero ficção, citando o escritor Leskov como modelo. Benjamin afirmava que isso estava se perdendo em sua época.
Rafael Sant’Anna é um jovem que deseja se tornar escritor e revela seu difícil ofício de inventar um lugar para suas palavras, mostrando os percalços desse processo revelador no livro de Martins. O seu norte para a criação literária é a “Grande Esfera Negra”, “de onde tudo brota, buraco negro que atrai, engole, regurgita. Dela vêm as palavras, a vida, tudo deste mundo e do outro também”. A metáfora do buraco negro é original, utilizando um elemento cósmico para se falar da invenção terrena, na qual a escuridão é a imagem mesma daquilo que está incompleto e em processo de formação, que precisa ser moldado, para que a claridade, a luz do imaginário, possa vir à tona.
A epígrafe do livro, um trecho do monumental e lapidar livro Masnavi, de Rumi, poeta persa do século XIII, nos mostra o ideário da plantação como o próprio ato da escrita, o ramo e o fruto, assim como sua inversão, o fruto e o ramo, qual desejou primeiro para que se produzissem os frutos? O jardineiro, o poeta ou narrador, é o que planta e colhe o sumo de seu processo de criação. Rafael evidencia sua tentativa de escrever, a inutilidade ou a dificuldade de começar, ou seja, de lançar a primeira semente cujo fruto surgirá posteriormente ao se inscrever numa oficina literária. Enquanto os outros se divertem, ele fica fechado em seu pequeno quarto: “Cada palavra, cada parágrafo, uma desistência. Para quê e para quem escrever?” E sua perspectiva ali dentro do cubículo para “seu árduo ofício” é restrita, pois “só enxerga uma porção da favela, um pedaço de céu, um galho de árvore: janela de meu quarto”, mas vai ser precisamente aí, nessa visão do real recortada de forma mínima, que ele vai nos trazer um mundo encantador, cujas histórias com temáticas diferentes e ímpares nos absorvem com seu poder de dizer as coisas de forma bela e cativante.
Apesar de sua pretensão para escrever, sua mãe e sua avó, roubam-lhe o tempo, pois ele é “escravo delas”, assim reclama. A casa seria esse espaço real da prisão. E a Literatura seria, de forma imaginária e ficcional, uma libertação dos reveses e ritual repetitivo da realidade? Pois as histórias aqui contadas não têm nada de repetitivo, nos conduzindo para os véus da diferença: “Faço minha parte: dou moral, vou às compras, troco meia dúzia de palavras, me tranco novamente”. Dessa forma, percebemos a imensa solidão do escritor, fechado em seu mundo pessoal, qual pássaro preso numa gaiola em que o único voo para a libertação final é o dom de inventar, criar, produzir histórias que nos envolvem em seus bicos de ouro.
Há os demônios familiares, o pai e o irmão que sempre reclamam com relação a ajudar com dinheiro, a avó de Rafael, com sua idade e doenças, e a mãe, com sua depressão, representam a fragilidade dos seres. A decadência da família nos demonstra sua exceção e seu excesso, corpos contrários, pois a mãe se caracteriza pela magreza, enquanto a avó, pela gordura. Duas imagens opostas que se afirmam como as contradições psicológicas no interior da própria casa, esse espaço ambíguo e polivalente que se choca com a riqueza do pai e do irmão, avaros, na verdade. A escassez financeira, doença em que corpo e realidade percorrem as vias imaginativas da escrita, que dosa, com labor e potência, os acordes de uma música plena de signos impactantes. A ausência do pai e do irmão, com problemas e reveses, leva, paradoxalmente, o narrador a fazer digressões. Ele nos conta sua história para além das outras histórias, num processo autobiográfico, em que Valéria joga, esteticamente, com as fronteiras entre realidade e ficção, nas quais o universo particular de Rafael é exposto no terreno da referência. A escrita é a via de escape, num processo catártico, de toda sua problemática.
O narrador, com seu poder de observação, entre o sujeito e o objeto, o eu e o mundo, nos apresenta seu método de escrita. Uma de suas funções é nos confidenciar, nos contar como se dá o seu “lugar das palavras” nas páginas de um livro. O escritor é um observador, pois, a partir da natureza, Rafael nos mostra as transformações das estações do ano, com seus elementos que vão se alternando com o correr do tempo. A paisagem das estações nos é apresentada com beleza e lirismo, os fatores do “tempo” e “espaço” se unem para o encontro entre a natureza e o meio urbano. E há a presentificação, como se o narrador estivesse vivenciando o momento do agora e nos contando, aproximando-se, assim, do tempo do leitor e da leitura. Machado de Assis, em “Instinto de nacionalidade”, assim escreveu sobre o conto: “É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade”. O poder de fabular de Rafael será incrível, com histórias que nos provocam as mais contraditórias sensações e questionamentos. Ao mesmo tempo que está imerso na escrita, volta-se para as coisas do dia a dia, com seus reveses. O narrador tem uma comicidade marcante em muitos momentos, como, por exemplo, ao ver o peixe se debater, sente pena e pensa em se tornar vegano para ter mais chances de encontrar namoradas.
O narrador, além de observador, interpreta o real, com relação a várias questões, como o mundo do Direito, a profissão de seu irmão, também sobre o trabalho de jornalista, suas chances, metas, problemáticas. O debate sobre o jornalismo é conduzido com seu reflexo na expressão no mundo contemporâneo. Há uma amiga do meio editorial que aparece em algumas passagens da narrativa, em que ela diz uma realidade: “todo escritor quer aparecer no jornal”. E o narrador diz: “Escritor não ganha dinheiro”, tirando algumas exceções, como o próprio Rafael salienta, ao citar Paulo Coelho. E reflete se outros escritores famosos teriam a mesma dificuldade de escrever.
A linguagem do narrador beira entre a norma culta e o coloquial, com a utilização da linguagem padrão, mas, ao mesmo tempo, utiliza gírias, expressões populares, a língua chula, de baixo calão, com palavrões, e linguagem obscena e erótica, mostrando sua diversidade de estilos. Num viés bakhtiniano, teríamos, dessa forma, um efeito carnavalizante, em que o alto e o baixo se mesclam. A polissemia é outro elemento estético de grande riqueza na sua escrita, com vozes narrativas muito diferentes entre si. E cada capítulo é entremeado por um conto, com um título para cada um como pérolas enredadas num fio central, a história maior do livro, que seria real, com a criação de contos pelo narrador-personagem, num processo inventivo, em que temos as linhas tênues da teia de aranha do fato e da ficção.
Com pouco dinheiro, Rafael consegue um emprego numa loja de vinil. Com seu salário, ainda que pouco, ajudará a família e ainda se inscreve na oficina literária, em que o professor, com sua competência, sinaliza os pontos positivos e negativos nos textos escritos de seus alunos. E daí, surgirão, belas e envolventes histórias que nos prendem como um ímã. Nádia Battella Gotlib, escritora e crítica literária, que observou essa tradição de contos enredados num livro maior, escreveu em Teoria do conto, sua obra fascinante e fundamental, que as Mil e uma noites são um conjunto de contos cujas metáforas representam a própria vida: contando-se, adia-se a morte. Afinal, Mário de Andrade, quebrando com o aspecto normativo desse gênero, escreveu: “em verdade, sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto”.
Nos contos de Valéria Martins, temos o encontro trágico entre o pai e o filho, um despacho de macumba, uma competição esportiva, as sensações do prazer animal com um cachorro como narrador, que sente e coloca sua perspectiva com relação à sua dona, como o animal vê, como observador do humano, as diferenças entre os prazeres do homem e do bicho, a imagem de uma tecelã, com os contrastes entre o alcoolismo e a religiosidade, o samba, uma aventura mangá, com os mafiosos e suas amantes, o menino de rua desabrigado e seu problema com as drogas, um mundo distópico e apocalíptico com uma escatologia trágica, mas que traz uma esperança no seio de uma família, a epopeia de Gilgamesh, um livro considerado um dos mais antigos do mundo. Aqui, Valéria Martins reconfigura, com proeza e maestria, o gênero da epopeia, narrativa grandiosa feita em versos, para o espaço mais conciso do conto, sabendo reter o infinitamente grande no menor, o maiúsculo e o minúsculo com toda sua pluralidade de significados, um andar vazio que conduz um fotógrafo aos delírios e prazeres mais orgiásticos com toques do mistério dos filmes hitchcockianos e referências à tatuagem de palavras e símbolos como na película, “O livro de cabeceira”, de Peter Greenaway, o papel do ghostwriter e sua relação com a filha, que quer criar para si e não para os outros. Assim, seus temas são ecléticos, não se prendendo a uma unidade amordaçada, mas com uma variedade que revela sua potência literária em unir vários estilos e assuntos, não conduzindo o leitor ao marasmo, mas ao interesse na leitura.
Por vezes, Valéria une uma realidade cruenta com algo delicado, dando o tom leve da pluma do pavão, com o lirismo e poeticidade de certas descrições. No seu livro, há também referências e citações da literatura, do cinema, da música, da religião, o que aponta para seu conhecimento e domínio dos saberes em sua variedade, dando novas roupagens e semantismos a partir dos contos.
Portanto, em seu estilo diverso, encontramos, também, frases-chave que nos direcionam para a síntese de reflexões mais extensas, a utilização de palavras estrangeiras, transcrevendo-as não em suas formas originais, mas como são faladas numa determinada região do Brasil, revelando sua brasilidade, o seu poder de fabulação, os paralelismos inventivos, a circularidade e a repetição de certas frases anteriores, a utilização do retardamento para explicar a origem de certas coisas, voltando ao passado, num flashback, como teorizou o filólogo alemão e crítico da literatura comparada Erich Auerbach, no seu texto “A cicatriz de Ulisses”, em que uma serva volta no tempo, para explicar na cena dos lava-pés a origem da cicatriz do personagem Ulisses. O narrador Rafael vai aqui explicar a origem de certas expressões utilizadas pela avó, numa rememoração fascinante e, finalmente, uma aprendizagem que nos mergulha no prazer do texto, como podemos observar no título de um livro de Clarice Lispector: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Valéria Martins nos aponta caminhos para o processo inventivo da escrita dos contos e da criação literária como um todo. Que seu livro encante cada vez mais leitores e encontre um lugar importante no universo literário. E que venham mais livros da escritora, que soube, já no seu livro de estreia na ficção, nos imantar com o poder das palavras.