por Mirada__
“Cobaia 09” (Caravana Grupo Editorial, 200 págs.) é uma obra que explora a deterioração da saúde mental de uma mulher em meio a um cenário de profunda desigualdade de gênero. A narrativa também reflete sobre o desaparecimento de pessoas, um fenômeno inquietante que pode ocorrer diariamente em uma grande cidade.
Trecho da página 50 a 52 do livro “Cobaia 09”, de Alexandre Cavalo Dias.
Estela cresceu como uma obscenidade em sua comunidade. Uma aberração que deveria ser combatida. Passou muitas dificuldades até ter idade suficiente para fugir e se mudar para a capital. Uma vez estabelecida, cortou todos os laços com seus poucos parentes. Do lado deles, foi um alívio. Estela ter ido embora. Quando se viu sozinha em uma cidade imensa, ela se sentiu livre pela primeira vez na vida e, ao mesmo tempo, percebeu que não seria fácil. Não tinha estudo suficiente, nem era capacitada para nada. O que lhe sobrava era a astúcia bem própria dos que precisam sobreviver. As primeiras crises de ansiedade são desse período. Conseguiu ajuda e tratamento. Mesmo com as crises controladas, era difícil ter um emprego normal. Viveu de pequenos trabalhos. Com a recém-conquistada liberdade, podia fazer coisas antes impensáveis. Começou por tatuagens e um corte de cabelo excêntrico. Seu novo visual ajudou a conseguir trabalhos em eventos e alguns amores que deram errado. Até que chegou ao Sensitive Bar. Na época, o lugar se chamava Bar do João e era uma espelunca caindo aos pedaços. Marcos comprou e reformou o espaço. Apostou em Estela assim que a viu pela primeira vez. A bartender nunca soube se ele vira potencial nela ou era apenas falta de opção. A ideia do nome do bar veio de Marcos, depois de ver os drinks que a jovem aprendiz criava. Pareciam mágica. Estela tinha certeza de que ele desconfiava. Marcos farejava que havia alguma coisa nela maior que apenas facilidade de aprender. Curiosidade não era uma qualidade do chefe, que tinha outros problemas para resolver e deixou-a em paz, enquanto fazia seu trabalho. Foi saudável para os dois. Logo o barbudo se transformou em seu único amigo verdadeiro na selva. Quando tinha crises agudas, era para Marcos que Estela ligava.
Cecília estava sem saber o que pensar. Queria acreditar em Estela, porque gostava da garota, mas uma sensitiva real? Tinha visto um bocado de coisas nos terreiros que frequentou com sua mãe quando criança. Lembranças do passado que ainda faziam parte da sua vida, só que hoje ela cultivava os fatos. Uma sensitiva era muito para sua cabeça jornalística.
― Você está me dizendo que toca nas pessoas e sabe do que elas estão precisando? Como uma espécie de paranormal?
― Nem sempre preciso tocar. Não tem regras determinadas e se chama empata. Considero paranormal um termo pejorativo, que não se aplica a pessoas como eu. Sou uma empata emocional. Absorvo os sentimentos do outro. Demorei muito para descobrir que o que eu tinha não era loucura.
― Existem outras pessoas como você? Já conheceu alguém assim?
― Nunca encontrei alguém parecido, ou se encontrei não percebi. Mas não acredito ser a única. O mundo é grande. Acho que quem tem esse tipo de habilidade costuma escondê-la a sete chaves.
― Isso é um tipo de poder?
― Não, poderes são legais. O que eu tenho é uma espécie de maldição. Não ouço vozes, nem vejo coisas, apenas sinto na pele o que há de bom e ruim nas pessoas. Como o músico que tem o “ouvido perfeito”, uma habilidade que pode ser aprimorada. Apenas isso.
― Você quer que eu acredite que existe uma mágica real?
― Não chame de mágica. Mágica parece truque barato, e não quero que você acredite em nada. Minha vida já é difícil o suficiente sem que eu precise provar o que sinto.
― Quer dizer que se eu te beijar sem gostar de você, vai perceber?
― É um pouco mais complicado que isso. Quando há, de minha parte, envolvimento emocional, os sentidos costumam se confundir, como em qualquer pessoa. Tem que ser algo muito forte para eu captar nesse estágio. Com certeza, vou saber se a outra pessoa não sente nada por mim. Pior que qualquer sentimento é a indiferença. Esse é o mais fácil de perceber.
― Isso explica seu sucesso no bar e sua vida solitária. Você capta exatamente o estado emocional do cliente e faz uma bebida condizente com o que ele deseja. Para o trabalho, é ótimo; agora, não deve ser fácil viver ao lado de alguém que pode ser um detector de mentiras ambulante.