Um pé lá, outro cá | Crônica de Anthony Almeida

por Anthony Almeida__





           Reorganizo os livros da minha estante. Os de crônicas, a maioria, ordeno segundo a história do gênero: a primeira fileira vai com os pioneiros do século XIX; Rubem Braga domina a segunda, tem a companhia dos seus contemporâneos; a terceira fileira vem da década de 1980 em diante; os meus contemporâneos estão na quarta. Grupinhos de gêneros diferentes enchem o resto da estante: outras prosas, poemas, estudos literários, viagens, estudos geográficos. Num canto, há os cadernos.

Abro um deles: a “capa é dura e com a bandeira de Pernambuco, coisa que por si só já traz um sorriso para o meu rosto. O pernambucaninho (...) tem seu fitilho e elástico, suas folhas em papel amarelado e o gracejo de não ter pautas. Mas a causadora de sorrisos nostálgicos, agregados a ele, não é a flâmula, é a mão que o deu. Presente de despedida, ela arrancou três ou quatro folhas com poucas anotações, feitas em Maceió, entregou em minhas mãos e as acariciou. Leva ele contigo, leva, você vai saber usar melhor que eu. Desculpa, ainda não sei como preencher suas folhas, já tão preenchidas de emoção”.

A descrição é de uma crônica minha: “Caderno vermelho”, de outubro de 2016, escrita quando eu morava no estado de São Paulo. Caderno aberto, releio fragmentos do destino que dei a ele. Foi preenchido como um relicário de viagem. De dezembro de 2018 a janeiro de 2019 voltei, numa ligeira visita, a Pernambuco. Fazia quase três anos que não voltava e pisava no meu chão natal. Amei com muita força a minha mãe e o meu pai. Pisei com força parecida o chão. 

Preenchi o pernambucaninho, a lápis, com os desejos e intenções de antes da viagem. Com caneta vermelha, fui escrevendo vivências, ensaios de crônicas que Pernambuco foi me dando, falas, sotaques, visagens... Entre as anotações, grudei com fita adesiva uma coleção de relíquias, um jeito de levar tudo o que conseguisse comigo. Ainda não sabia quando retornaria a vê-los — nem sabia que passaríamos por uma pandemia, que sobreviveríamos a ela. Durante a saudade e a peste, durante ainda mais saudade, revisitei o relicário. 

Revisito de novo. A folha de rosto: 


PE/SP/PE





Um pé lá,

Outro cá




Anthony Almeida





2018/2019


Atrás dela, uma etiqueta da primeira passagem: 19 de dezembro de 2018. A segunda está grudada na última folha e é de 21 de janeiro de 2019. Abrem e fecham o caderno, formam uma espécie de prólogo e epílogo, mas não encerram o conteúdo — há poucas páginas limpas, apenas enumeradas, perto do fim do pernambucaninho. Será que ainda devo preenchê-las? 

As relíquias do miolo começam na página 8: três folhas de canafístula; sua flor está igualmente grudada com durex, mas lá na 38. Havia um pé de canafístula na nossa antiga casa, a do número 208. Há muitas canafístulas em Caruaru. São muitas as minhas relíquias verdes. Na página 52, colei uma folha em formato de coração. Foi colhida na Praça da Criança. Sua árvore sombreia um dos balanços que muito me balançou menino. Mais folhas, de catingueira, de mameleiro, de castanhola, de flor de caracol, de mastruz, de azedinho, de algaroba, de umbu novinho e do pé de tamarindo da Feira de Artesanato, incrementam o memorial — quando retornei para morar em Pernambuco, visitei a Feira e a tamarineira havia sido decepada; permanece apenas o seu toco enraizado.

A página 99 tem um inventário de cicismos, algumas das invenções de Cici, minha mãe. Esgulepar, apiongar, esquipar, fuviar, espapassar, vangolar, redolerar, mamanzar ou manzanzar estão entre os verbos. Fatisco, bizinguelinho, cachete, murianha, catarica, caeba, bostoque, buzigo e mais um bocado de neologismos completam a lista. Nem todos são, realmente, neologismos dela. Foi de sua voz, porém, que os ouvi e ouço sempre que a revejo — um dia escreverei um tratado geral de cicismos.

Do nosso tio, meu tio-avô, duas relíquias: um pedaço de guardanapo, com a marca duma cafeteria, na página 32, relembra um dos passeios que fizemos pelo Centro de Caruaru. Na página 140, um papel perfumado, um tipo de amostra grátis dada por uma vendedora, guarda um restinho de nada do cheiro. Guarda a lembrança daquele mesmo dia, quando ele, o dedo indicador levemente perfumado, penteou o seu bigode branco: — Bonito e cheiroso! — arrematou, depois do penteado.

O futebol tem duas relíquias. O canhoto dum ingresso, de 19 de janeiro de 2019, dia de Central x Náutico, quando levei meu pai para o estádio, está na página 136. Debaixo do papel, anotei: Central 2x1 Náutico. Mas, pelo que me lembro, o jogo foi 1x1. Rapaz, papai era centralino. Com o tempo, se abusou das derrotas seguidas do Central e virou torcedor do Sport. No Central x Náutico ele ficou foi todo esperançoso com o antigo time. Quase desvirou a casaca. O empate o impediu. Se o Central tivesse ganho… Foi por isso que escrevi o 2x1? Há também um adesivo dum boneco, com a camiseta do Sport, na página 66 — é a segunda relíquia; me relembra que meu pai segue torcedor do Sport e reafirma que é por causa disso que também torço pelo mesmo time.

De Caruaru, uma etiqueta, na página 150, resgata o queijo de coalho que levei ao retornar para São Paulo. A visita ao Recife está representada na página 106, num ingresso amarelado, de meia entrada, para o Cinema São Luiz: “Cinema é a maior diversão”. O rótulo de Axé Yô, bebida ancestral, feita de aguardente, mel e ervas especializadas, na página 128, é o marcador do dia em que vangolei em Olinda.

Escrevi, parágrafos atrás, uma dúvida sobre continuar a preencher o pernambucaninho... Mas, já faz um tempo, comecei a colar outras relíquias em suas folhas: um bilhete com desejos de Feliz Ano Novo, para 2024; folhas da aceroleira do terraço de casa; uma pena de codorna, outro bilhete com um “trate de se recuperar logo”, de dezembro de 2022, quando quebrei o ombro; um ingresso do Cinema da Fundação, do filme “Dias perfeitos”, assistido num dia que se tornou perfeita lembrança… São todas desta minha nova vida pernambucana. Mas ainda tenho algumas páginas para fechar o caderno.

Começo a preencher o papel com o esboço deste texto aqui. O ensaio desta crônica, escrevo à caneta preta, escrevo e vou até a folha da passagem-epílogo. Completo o caderno com meu Pernambuco de antes e de agora. Fecho um ciclo.


— Recife. Julho, 2024.







Anthony Almeida nasceu em 1989, em Caruaru/PE. É cronista, geógrafo, professor e editor-adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado em Geografia Literária na UFPE, campus Recife, sobre o tema ‘Geograficidades do mundo vivido-escrito na crônica brasileira’. Escreve para a Revista Mirada. Saiba mais em: https://linktr.ee/anthonypaalmeida