A folha datilografada | Crônica de Raphael Cerqueira

 por Raphael Cerqueira__



             — Viagenzinha demorada essa, hein. 

O sujeito ao meu lado resmunga. Ignoro-o: desagradam-me seus caninos, mais lívidos que sua cara, quase tocando minha jugular.  

— Você embarcou noutra viagem aí, né?  

O sorrisinho dúbio entre o bigode-chinês também me incomoda. 

Levanto, deixo o livro na poltrona.   

— Ih, o banheiro está um nojo. 

Tento não esbarrar em suas pernas esguias, ignoro seu olhar inconveniente sobre meu corpo.     

Demoro o tempo de uma mijada. 

Ao retornar, encontro a poltrona desocupada. Contudo, outra preocupação me consome: o destino do garoto Har. Retomo a leitura do conto. Uma folha amarelada, dobrada em quatro, cai em meu colo. Alguém, talvez aquele esquisito, a enfiou entre as páginas, concluo. 

Espio sobre as poltronas. Ele não está mais entre nós. Coisa curiosa: o ônibus não parou enquanto estive no banheiro... Bem, pelo menos me livrei daqueles caninos e, sobretudo, daquele olhar inconveniente.

Desdobro a folha. Datilografado em letras vermelhas, um texto apócrifo. Quem, nos dias de hoje, usa máquinas de escrever, me pergunto. Como resposta, vem a lembrança daquela vizinha que passava as noites batendo obituários para o jornal numa máquina mais barulhenta que as oficinas do diabo… Tempos depois, processada pelos condôminos, ela se mandou de mala, cuia e Olivetti.   

Afasto as reminiscências, leio o texto:       

Ele me vê chegar, e logo seu desejo se manifesta. Eu noto, o mundo nota: impossível não notar tudo aquilo querendo trespassar a sunga, querendo libertar-se, me querendo.

Passo por ele, vou para a sombra. Deixo o celular, a camiseta, a carteira na mesa. Aliso o canudinho do coco que alguém, talvez ele, largou ali. Ele sorri. Um sorriso afoito, de quem tem pressa, um sorriso exigente: quer que eu mergulhe para que venha logo atrás, por trás de mim, como um predador faminto. 

Eu noto, o mundo nota a gotícula de desejo brotar em seu belo rosto, deslizar para o peito, passar pelo abdômen igualmente depilado, se perder entre os pentelhos que desafiam o cós da sunga. Eu reparo, e me desfaço dos chinelos, da bermuda, do Technos que ganhei de minha gente quando me formei. Me desfaço de tudo, vagarosamente, sem deixar por um segundo de fitar seu despudor mais que insinuante. 

Súbito, ele se levanta. Não é mais o menino que, noutra tarde, percorreu sendas desconhecidas ao meu lado, desengonçado como uma marionete. Não, agora é um homem e, por isso mesmo, pensa que entende tudo. Tolinho, há tanto para aprender… 

Meio-dia, em ponto. É o que seu pau, ainda em combate com a sunga, informa. Na beira da piscina, voraz, atrevidíssimo, ele me devora. Eu piso, devagar, sentindo cada ranhura da ardósia. Ele me encara, faminto, mãos sem paradeiro, pés inquietos. Porém, é a doçura de seu rosto quase imberbe que me atrai. E eu vou ao seu encontro, no meu passo maduro, ajeitando os óculos, ajeitando minha Colcci. 

Um louva-deus plana no anil da piscina. Um bem-te-vi corta o céu, trepa o coqueiro para nos observar. 

Contorno a piscina, espio o prédio vizinho: uma mulher fuma à janela, um velho lê o jornal na sacada, uma criança berra na cobertura… Aqui pertinho, alguém ouve Whitney Houston. Nossa canção, lhe sussurro, parando na escadinha. Ele, que nunca entendeu meu gosto por essas músicas velhas — sempre o corrijo: velhas não, do meu tempo — sorri, mais ansioso. Tudo nele anseia, tudo mesmo. 

Sei o que meu menino tanto quer. E, para satisfazê-lo, ordeno: tira, mergulha. Entre nós, desnecessários os substantivos: nos conectamos com verbos. Veloz, ele se livra da sunga, que fica largada no chão. E, no átimo antes de se entregar à água, revejo tudo aquilo que já foi meu, e será novamente. Deixo escapar um prazeroso suspiro. Acho, ele não notou, preocupado em ajeitar os cabelos. 

I wanna feel the heat with somebody… aumentaram o volume… Yeah, wanna dance with somebody… donde vem, não importa… With somebody who loves… também estou mais forte, também me liberto. Ouso me despir, e dane-se o que o mundo, o que as pessoas do prédio dirão. Não tenho mais, eu sei, a vitalidade, a disposição do meu menino. Por isso, sento na escadinha. 

Mergulho primeiro os pés. Miro o frescor da mocidade, suas mãos ainda sem saber aonde ir. Porém, é a encantadora curvatura de seu lábio superior que acelera meus atos. Ordeno: fique onde está (sim, às vezes, admitimos um ou outro advérbio entre nós).

A água se apossa, aos poucos, do meu corpo em brasa; o cloro brinca com meu sexo, com a butterfly tatuada em minha pelve. As mãos dele continuam errantes, agoniadas. Sorrio, um sorriso que é autorização. Meu menino entende e, sedento, vem. Largo os óculos. Me deixo cair em seus braços, mergulhar em seu fervor primaveril.  

Enquanto Eros se manifesta em nós, nossas sungas, juntinhas, se banham ao sol.


P.S: Refiz aquela rota muitas vezes, felizmente nunca mais vi o sujeito da cara e dos caninos lívidos. 



Raphael Cerqueira Silva é cronista de Minas Gerais, servidor público, graduado em História e Direito, colaborador nas revistas Conhece-te e Vicejar, colunista no Entretextos. Em 2020 publicou Confissões e, em 2024, A vida segue.