Achados Perdidos | Crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__


 


               
Foi num período em que ele trabalhava em casa e assim podia ficar encarregado da deliciosa tarefa de buscar a filha na escola. Nunca perguntou, mas desconfiava que a mulher invejava tal privilégio nos poucos anos em que assim foi. Pouquíssimos, na verdade, porque filhos crescem e começam a não desejar muito a presença dos pais na frente da escola, preferindo o ônibus escolar. Mas quando chegava em casa com a menina não tinha mais trabalho que o segurasse, os dois iam direto para o sofá assistir na TV o programa infantil predileto dela.


Ele também gostava do programa, mas tinha uma coisa que sempre esperava encontrar — ou melhor, ouvir — na edição do dia. É que de vez em quando, talvez uma vez por semana, cada quinze dias ou cada mês, não sabia, usavam de fundo musical um trem maravilhoso de ouvir, que ele amava, piano, flauta, baixo acústico e bateria. Era música irrequieta — feita para alguém incrivelmente irrequieto (Lôro, soube mais tarde, fora feita para Hermeto Paschoal, bingo!) —, não dava vontade de ficar parado, ao mesmo tempo em que pedia silêncio para degustar cada nota, cada compasso, cada conexão e troca de passes entre os instrumentos. A flauta e o piano atacavam em uníssono, rápidos; baixo e bateria inquietos e envolventes na sustentação. Tudo tão impressionante que sempre que a música aparecia no programa a ilustrar qualquer coisa, a filha olhava para ele, sorria marotamente e saía correndo de supetão pela casa. A parte dele era aumentar o volume da TV ao máximo para ouvir a música de qualquer ponto do pequeno apartamento e ir o mais rápido possível atrás dela.


Assim que a alcançava, a bagunça começava pra valer, ela era jogada para o alto, enquanto ele assobiava a melodia e beliscava de leve sua barriga com a ponta dos dedos como se tocasse as cordas do contrabaixo até chegar a parte do solo de piano. Aí era uma agonia, os dois pareciam receber o espírito do bicho carpinteiro, ele se imaginando um pianista nos teclados irregulares e macios da barriguinha dela, de um lado para o outro, pra cima, pra baixo e ela naquele desespero risonhamente escancarado e ele se esquecendo do mundo com a filha nos braços em êxtase com a música, com as cócegas, com a algazarra, se imaginando o próprio Gismonti naquele pianinho gordinho, carne da sua carne. O fôlego indo embora, a música não se acabava, a flauta retornava rápida junto com os repiques ligeiros da bateria, o grave dum-dum-dum do baixo e tudo, aos poucos, ia serenando, a velocidade da música diminuía, pai e filha caindo exaustos em câmera lenta no sofá, coreografados pela música que diminuía e felizes com os últimos sinais das gargalhadas até o delicado e suspenso acorde final. Ufa!


Instantes depois: “De novo, Pai!”.


Fazia tempo que ele não ouvia a música, apurado com tanta coisa, a vida anda dura, a filha está longe, levando a vida dela. Eis que o celular apita. Essa onda de grupos de zap-zap não tem mais fim. Surpresa, era ela. A danada anda tão ocupada que fica semanas sem dar notícia. Ele não distingue bem o que há na tela do aparelhinho. Foto? Vídeo? Põe os óculos, parece um vídeo, toca com o dedo, toca, toca e nada, deve ser o sinal ruim da internet. Mas o quê qué isso? Não enxerga direito, não tem mensagem escrita. Enfim consegue acionar o treco, era um vídeo, músicos num palco, a pianista estala os dedos e começa. Aos primeiros acordes as pernas bambearam, a idade deixa as pessoas mais emotivas. Instintivamente os dedos começaram a cutucar a própria barriga e ele teve a nítida sensação que era uma barriguinha pequenina de onde saíam gargalhadas de menina. Era a fraçãozinha de uma apresentação que ela devia estar assistindo bem longe dele, uns 600 km distante. E o mais louco desta história é que a pianista que tocava era filha daquele Gismonti. Benza Deus!


Largou no ato o trabalho chato que estava fazendo, fuçou desesperado na velha estante de CDs, não queria perder a sensação daquela Madeleine sonora, fechou a janela, apagou a luz, se esticou na poltrona e passou o resto da noite de fone de ouvido e com o dedo no botão repeat do controle remoto.







Luiz Henrique Gurgel 
é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)