Como escrevi um livro dentro de uma caverna no Monte Roraima? | artigo de Edgard Zanette

 

por Edgard Zanette__





Aventuras se tornaram clichês? Talvez, mas nós persistiremos fazendo aventuras e falando sobre elas. Bem, saímos de van da cidade de Boa Vista, Roraima, em direção à Venezuela. Após duzentos e poucos quilômetros de uma estrada complicada, cheia de buracos e mal conservada, passamos pela imigração e apresentamos documentos em uma situação complicada, isto é, havia a tentativa das autoridades Venezuelanas em receber alguma propina para nos deixar entrar. Porém, como a agência de turismo está acostumada, resolveu a situação e entramos no país vizinho. 

Chegamos na cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén e repousamos em uma pousada muito agradável, uma espécie de mini-hotel de selva, e nela a emoção já era sentida ao interagir com a equipe, formada ao acaso pela agência de turismo. Esse é um dos acontecimentos que mais admiro em viagens: a formação espontânea de um grupo. Você está ali, conhecendo pessoas que passarão sete dias com você, que dividirão refeições, banheiros e conversas, e o sucesso da sua jornada depende desses estranhos. Claro, se o santo não bater, serão dias e dias de tortura, brigas, ou de silêncios e mal-entendidos. Mas, nossa expedição foi tranquila e os colegas eram simpáticos e colaborativos.

Caminhar! Eu não imaginava que uma expedição ao Monte Roraima seria um exercício solitário de andar por horas a fio. Sim, preparei-me para a subida, frequentando a academia quatro vezes por semana durante dois meses antes da jornada. E pratiquei algumas caminhadas e corridas noturnas, porém tudo em um nível moderado. No entanto, quando o guia indicou o horizonte e exclamou, “vamos!”, prosseguimos sob o sol, numa região incrivelmente quente e com a presença de poucas árvores. É então que você percebe que as fotos perfeitas e “instagramáveis”, divulgadas nas redes sociais, não capturam a verdadeira essência da jornada.

Refletindo sobre toda a sua vida, você passa sete dias caminhando, em uma jornada introspectiva e se emociona na solidão. É uma experiência de detox que eu altamente recomendo; porque ficamos sete dias sem qualquer comunicação via celular ou internet. Como de costume em minhas viagens, levei um livro para ler, um caderno e três canetas, registrando tudo em forma de diário.

Adorei caminhar. Descobri que sou mais resistente do que eu inicialmente pensava. No entanto, o melhor da expedição era o momento de descanso, porque podíamos contemplar a natureza e relaxar durante esse tempo. Os melhores momentos do dia eram quando nos sentávamos em cadeiras desmontáveis, aquelas cadeirinhas de acampamento, bem levinhas, e tomávamos chá de camomila ou de orégano - o orégano era colhido no próprio local! - e contemplávamos o Monte Roraima, uma área de natureza milenar e bem preservada, que irradiava uma energia empolgante.

Já tinha esboçado uma parte do roteiro na minha mente, porém, ainda faltavam alguns elos da história. Nenhuma palavra estava no papel, tudo ainda residia na minha imaginação. Foi assim que nasceu a pequena aventura literária Assassinato no Monte Roraima, durante minha jornada. Na primeira noite em que dormi lá em cima, fiquei extasiado com o local escolhido para acamparmos. Era um complexo de rochas, uma espécie de hotel de cavernas, em uma geometria aproximadamente retangular, enorme e, no centro, havia um terreno do tamanho de um campo de futebol oficial, talvez até maior, repleto de rochas, folhagens, musgos, algas e plantas pequenas. Havia poças de água cristalina, criadas pelas chuvas, ou pela condensação do ar, coloridas e transparentes que reluziam, na maior parte do tempo, a cor dourada, meio marrom, mas também reluziam outras cores, tais como o verde e o azul. As cores variavam dependendo da luz e do horário; elas mudavam muito naquele local. 

Tudo ali é único: cada instante, cada planta, cada bromélia e cada orquídea. Tentava olhar para tudo e sugar aquela natureza, mas era impossível. Meus sentidos eram incapazes de colher aquela beleza, e logo depois eu esquecia boa parte do que tinha visto, porque a memória não se lembra sempre dos detalhes, e tanta coisa linda pelas quais passamos, dias depois, eu esqueci. Sinceramente, eu não quis permanecer metralhando a natureza com meu celular e minha câmera fotográfica, simplesmente fiquei, na maior parte do tempo, olhando e tocando aquela beleza.

Na primeira noite, logo após um jantar gostoso, me acomodei na minha barraca. Ainda era bem cedo, porque estávamos cansados e destruídos com a caminhada. Foi ali que eu, com minha lanterninha comprada em Lethem, a cidade fronteiriça da Guiana que faz divisa com Roraima, me sentei no saco de dormir e comecei a escrever. Tenho uma relação ambígua com a escrita: amo-a e a odeio. Amo-a porque é uma parte intrínseca de mim, e a escrita flui, sai dos meus pensamentos e dos meus dedos com muita facilidade. Mas a odeio, pois me torna obsessivo e focado, fazendo-me esquecer do mundo e não sossegar enquanto não terminar o que comecei.

Naquela madrugada, escrevi até o amanhecer. Revezava entre escrever a história desde o começo, com a articulação, em um rascunho, da construção do roteiro que era criado ao mesmo tempo que a história estava sendo escrita. Claro, os cursinhos de escritores não recomendam esse processo, espontâneo, com o roteiro sendo criado no acontecimento da história que se desenhava. Porém, foi assim que aconteceu e vários dos livros que escrevi sobre Filosofia surgiram. Nem tudo que é escrito acontece de maneira cartesiana, muitas vezes o planejamento não gera sucesso. O acaso, a emoção, o erro, a dúvida, também são elementos que geram obras magníficas. Prefiro não escrever de maneira robótica e dogmática. Sim, eu li e sou apaixonado pelos clássicos, mas gosto de brincar, ousar e errar.

“Assassinato no Monte Roraima”  foi escrito dessa maneira, um laboratório de escrita, meu primeiro romance. Houve momentos em que questionei se a narrativa precisava de mais detalhes e me perguntei, até o momento de submeter o original para a impressão, se deveria expandir mais a história. No entanto, contive-me e cumpri meu objetivo de escrever um livro compacto, de oitenta páginas, como minha introdução ao mundo literário. Quis contar uma história que mesclasse literatura, filosofia, xadrez e a cultura regional de uma maneira leve, para encorajar meus alunos, alguns dos quais nunca haviam lido um livro antes, a lerem sua primeira obra, e assim ocorreu. Diversos alunos meus leram e adoraram o livro, apontando críticas, identificando erros e sugerindo ideias para a próxima edição. Sinto-me honrado por passar três noites no cume do Monte Roraima, onde, em uma barraca modesta, escrevi um livro singular, com uma história que evocou emoções a serem compartilhadas com todos que apreciam a arte da escrita como um evento único.





Edgard Zanette é escritor, pós-doutor em filosofia e campeão brasileiro de xadrez blitz,  “Assassinato no Monte Roraima” (80 págs., Editora CRV)  é seu primeiro romance. Também é autor de “Ceticismo e Subjetividade em Descartes” (Editora CRV) e “Aprenda Xadrez com os Filósofos” (UERREdicoes).