por Wellington Amancio__
O envelope dos correios anuncia a surpresa, um livro de Carlos Galdinho. Poeta nascido em São Paulo, presença constante nos saraus. Com a obra em mãos, instantaneamente emito pensamentos de gratidão ao universo, na esperança de que alcance o poeta.
O livro de capa vermelha elegante e precisa tem 52 páginas, publicado em 2024. É um lançamento da Editora Forja, essa nova porta de entrada aos poetas e escritores que buscam fiel acolhida à viva voz da poesia e da ensaística. A Editora está aos cuidados do Professor universitário e poeta Dr. Cleber Baleeio, nosso amigo em comum. Inclusive ouvi deste boas referências sobre o nosso poeta.
Como dito, Carlos Galdinho usa a palavra poética para registrar o cotidiano emocional e histórico que o rodeia. Desta vez, seu passeio atento, rimado, preciso, entre passos singelos e complexos, se realiza no entorno de uma musa, que às vezes penso ser a cidade ou uma pessoa, mas são as duas, porque deveras a pessoa amada, constantemente dá força e forma nova ao lugar, bem como a sua ausência é reclamada pelo espaço vazio em que outrora habitava. E este “espaço sem ela”, que não aponta à sua presença, porque não é mapa, é por vezes o que se tem como gatilho para a memória afetiva.
Como no poema “No banco do lado”, em que “o amor da vida inteira” — esse tipo raríssimo que surge da sorte —, poderia ter sido, entre o Largo Treze e o Terminal Bandeira, no banco do ônibus, mas não foi — e o que seria se fosse? Neste livro, este é o esforço do poeta em contá-lo. Aliás, Terminal Bandeira pode ser um ponto heterotópico, portanto de passagem, ou alusão a uma uma pessoa, como um ponto de entrada e permanência, um lugar cuja lugaridade poética definiu o que somos, tal ao poeta de Pasárgada, citado também na página 48, mas numa perspectiva de “solidão poética referenciada” no mestre Manuel*.
Galdino nos presenteia com belos haicais, aqui e ali, como no singelo “A solidão caminha / com as coisas dela / entre as minhas.” Portanto aí eu quero entender que a ausência da amada não é ausência total; a memória por um tempo não permite que ela se vá de todo e insiste e representá-la (por força maior), até sua presença está impregnada no exterior, nos seus pertences, quase sem separação. Talvez a minha concepção de amor seja muito nordestina e sertaneja, quando leio que “Se estira a noite/ feito um rio indo/e a lua de cima/ fica sorrindo”, ainda que a poesia de Galdino seja universal, e que a lua seja universalmente o lugar onde o olhar solitário de ambos se encontram na distância. Porque a noite é a condição incontornável em que as ausências se acentuam.
Os poemas heterotópicos de Galdino estão cheios de lugares de passagens, de estações, ônibus, terminais, ciclovias, ruas avenidas, cartões de embarques, carros, catracas, a demonstrar não apenas o poeta andarilho e viajor, mas o poeta contemplante, apaixonado ou não, sofrendo ou não por amor, em busca da amada ou dos amores, em busca dos lugares e paisagens que ama com seu olhar estilístico e afetivo, contemplativo. Seu enduro pela cidade não parece um escape, mas uma potente vontade-de-encontro, uma busca por mimetizar elementos da paisagem, pessoas, auras, situações, memórias que aponte à musa.
Penso que amor é antes de tudo respeito, esse tipo forte de consideração: res (coisa exterior) pectus (o pacto de inserir dentro do peito, do arcabouço da memória, dentro do âmbito dos interesses sinceros aquilo que se ama, a cidade, a memória e elementos da cidade, a amada e o seu universo personal dela. Por si só, tal assimilação — esforço absurdo e busca de sentidos, trabalho de ouvires em busca da imagem dourada, mimese do rosto dela — é poesia.
Em matéria de amor, na forma empírica, o autor aposta alto quando pergunta “O que eu faço com teu beijo, se o meu desejo é maior?”. E até aí eu pensava que o seu livro giraria e torno de uma bela declaração de amor à amada, todavia é uma declaração de amor às coisas todas da amada, seus gostos pessoas, os lugares onde esteve ou por onde passa, as “cores do seu perfume” bem como a “voz dos seus cabelos”. Esta referenciação obliqua à amada — utilizando-se de elementos da cidade, periféricos à sua presença e que perpassa, atravessa o seu significado de pessoa humana — age como um grande e poderoso ornamento da sua presença.
Releio o livrinho e sigo entendendo a sua existência literária, seu modus operandi e sua provável razão de ser. Se essas memórias poéticas, suscintas neste livro, se referem a perda “Numa esquina se nome /perdi o endereço do seu olhar” percebe-se que nos espaços indefinidos (porque somente o lugar tem nome, seja Pinheiro e Tietê) esses espaços ganham sentido pela potência do nome implícito da musa. Quem é a musa de Galdino, São Paulo da garoa, ou uma mulher que faz chover palavras enxutas, precisas na cidade imaginária, subjetivada do autor?
Se o conceito abstrato de amor já é essa coisa multiforme e repleta de polissemias, não devemos esquecer das suas diversas margens (Derrida) disponíveis apenas aos corajosos, como o nosso poeta. Aos amantes ou não, a ressignificações do amor é diversas e ao infinito; imaginemos, pois, até que ponto pode-se transcorrer, numa perspectiva pragmática, esse amor na carne e em atos, que a mais das vezes ostenta uma sensualidade não-sexual como vestido fino íntimo, no sentido de singular, à paisagem da cidade. Decerto a tua musa é a rouba que embeleza São Paulo.
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*Penso que os dois versos da página 48 são o paradigma emocional e afetivo deste livro, o espírito e o tom deste livro se encontram aí, e Manuel Bandeira é o estre e questão, nas entrelinhas destes poemas breves.
Carlos Galdino — Multiartista, Contador de Causos e histórias, Radialista, Poeta.