Penélope dos Trópicos, romance de Luciana Hidalgo | Resenha de Adriane Garcia

 por Adriane Garcia__




Por estes dias, fui tomada pela leitura de Penélope dos Trópicos, desde a primeira ventania. É assim, na aparição elementar do deus Éolo, com gaivotas riscando o céu, que Luciana Hidalgo começa esse romance singular. Sua protagonista é um retrato em extinção: culta, criativa, crítica, otimista, verdadeira, corajosa, pacifista, livre. Seu narrador é a grande surpresa do livro. A linguagem é fluida, ágil, inteligente e os temas se encadeiam como a vida se encadeando. O cenário é o Brasil governado pela extrema-direita, os figurantes são os inumeráveis mestiços-cordiais-carnavalizados com pitadas de bárbaros-corruptos-inclementes, defensores púbicos de tortura. As palavras são aquelas que têm coragem de trazer seu significado, longe do excesso politicamente correto e vigilante, que para além da ambição de destruir o mal no mundo, destruirá a expressão artística. Sem condescendência, Penélope dos Trópicos está entre aqueles livros que não só relatam o seu tempo, como resistem ao que há de pior nele, e aqui, falo também de linguagem. Nada escapa a Penélope e não há qualquer censura que lhe atropele o pensamento, muito menos seu narrador teria motivos para concessões. Penélope cataloga pessoas, observa a condição humana, sem usar o carente pretexto dos coadjuvantes ao implorar por atenção: “me julguem”; apesar de, como jovem adulta do seu tempo, não escapar das redes sociais.


Ela própria faz seu julgamento e não escapa à autocrítica se afirmando uma mestiça-cordial-carnavalizada. Filha de uma mãe professora de mitologia grega e um pai latinista, recebeu uma educação refinada e questionadora refletida no seu tipo de humor irônico, nas digressões que faz para analisar a realidade brasileira. O recorte é a sociedade do Rio de Janeiro, lugar de onde a protagonista não sai, ali onde um Odisseu pode aparecer ou não. Arquiteta, ela desenha futuros melhores enquanto a situação político-social mostra toda a sua carga de violência, milícias e crime organizado. Luciana Hidalgo constrói uma história capaz de mostrar como as vidas particulares, subjetivas, estão imersas no contexto histórico. Em tempos em que é preciso dizer o óbvio, há um grande mérito em uma narrativa que faz o leitor concatenar espaço-tempo-subjetividade.


Outros personagens movimentam as páginas de Penélope dos Trópicos; Teco, seu amigo que lhe deu o codinome que intitula o livro e que divide com ela o trauma da orfandade precoce; os vizinhos do condomínio que participam de sua vida desde a morte dos pais, Theo, o professor de grego da universidade. Leitora da Paideia, Penélope procura habitar da melhor forma possível sua existência. Ela sabe que é preciso aproveitar cada oportunidade da vida — o tempo de Kairós — e que é preciso dar sentido ao espaço que existe entre nascer e ser devorado por Cronos. Para isso, para dar o melhor de si, é preciso desenvolver a “areté”, a virtude. 


É mesmo virtuoso, em uma época de intenso individualismo e consequentes violências, uma autora nos contar uma ótima história que nos leve de volta aos valores de fundação da pólis, que nos lembre que a virtude passa pelo bem coletivo e já esteve ligada à luta heroica. Claro, pode também acontecer um sentimento de tristeza e indignação durante a leitura, exatamente por sentirmos a distância dessa heroína com relação àquilo que, como sociedade, nos tornamos. Porém, os bons livros são assim, eles não costumam ser confortáveis. Onde está a nossa “areté”? Que tipo de povo somos ou seremos? Somos povo? Qual a implicação de trocar deuses que nos exigiam grandes feitos por deuses que nos exigem dízimos? A “areté” em contraponto com a mediocridade. 


Nas praias, como nas redes sociais, Penélope percebe a obediência a padrões, simulacros não só de situações, mas de pessoas: “São meio fake sim (mas o mundo, o que é mesmo?).” Até as bibliotecas em sua terra são simulacros, pois não parecem feitas para a iluminação tropical, por isso, Penélope sonha com a “Biblioteca Ideal”, sem melancolia, sem luz importada da Europa. Enquanto pensa espaços para que a beleza também transforme a cidadania —  suas microrrevoluções — o horror recrudesce, o fascismo está instalado. Resta-lhe lutar, pois ela não aprendeu a capitular sem luta, seus exemplos vêm de um tempo civilizacional e de um tempo mítico. Resta-lhe fazer do Rio de Janeiro e de seu próprio corpo a sua Ítaca. A penelopeia escrita por Luciana Hidalgo não é nem aquela de quem sai, nem aquela de quem espera. É a penelopeia daquela que tenta compreender seu mundo e não se encaixa nele, é a penelopeia de alguém sem-lugar. 



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A revolucionária do dia, contudo é Penélope. O vídeo do ataque da polícia à manifestante pacifista viralizou nas redes sociais. Penélope, heroína nacional. Quer dizer, heroína de uma parcela menor da nação, já que a parcela maior dessa mesma nação elegeu democraticamente o governo de extrema-direita que aí está, causando estragos. Nas redes sociais, portanto também há quem a xingue de vagabunda, baderneira, feminazi

#têmmaiséquemorreressasfeministas

Lucas se diverte ao ler hashtags e comentários broncos sobre a namorada. Ninguém mais se choca com tanta barbaridade dita-escrita-compartilhada. O povo se indigna, recorre às redes sociais, faz piada, ri de tudo, até (e sobretudo) do que não deveria rir. Penélope ri de volta num desprezo total pelos insultos. O que ela pensa deles é muito pior do que aquilo que pensam dela.”


(p. 130/131)


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Penélope dos Trópicos

Luciana Hidalgo

Romance

Editora do Silvestre

2022



Luciana Hidalgo é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ e pós-doutora pela Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3, onde é pesquisadora. Ganhadora do prêmio Jabuti com os livros, Arthur Bispo do Rosário O Senhor do Labirinto (Editora Rocco/1966) e Literatura da Urgência — Lima Barreto no Domínio da Loucura (Annablume/2008). Em 2011 lançou O Passeador, pela Rocco, romance que foi finalista dos prêmios, Portugal Telecom, Jabuti e Prêmio São Paulo de Literatura em 2012, na categoria “melhor romance”. Em 2016 lançou pela Rocco, o Romance Rio — Paris — Rio.




Adriane Garciapoeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei — a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)