por Adriane Garcia__
Ela própria faz seu julgamento e não escapa à autocrítica se afirmando uma mestiça-cordial-carnavalizada. Filha de uma mãe professora de mitologia grega e um pai latinista, recebeu uma educação refinada e questionadora refletida no seu tipo de humor irônico, nas digressões que faz para analisar a realidade brasileira. O recorte é a sociedade do Rio de Janeiro, lugar de onde a protagonista não sai, ali onde um Odisseu pode aparecer ou não. Arquiteta, ela desenha futuros melhores enquanto a situação político-social mostra toda a sua carga de violência, milícias e crime organizado. Luciana Hidalgo constrói uma história capaz de mostrar como as vidas particulares, subjetivas, estão imersas no contexto histórico. Em tempos em que é preciso dizer o óbvio, há um grande mérito em uma narrativa que faz o leitor concatenar espaço-tempo-subjetividade.
Outros personagens movimentam as páginas de Penélope dos Trópicos; Teco, seu amigo que lhe deu o codinome que intitula o livro e que divide com ela o trauma da orfandade precoce; os vizinhos do condomínio que participam de sua vida desde a morte dos pais, Theo, o professor de grego da universidade. Leitora da Paideia, Penélope procura habitar da melhor forma possível sua existência. Ela sabe que é preciso aproveitar cada oportunidade da vida — o tempo de Kairós — e que é preciso dar sentido ao espaço que existe entre nascer e ser devorado por Cronos. Para isso, para dar o melhor de si, é preciso desenvolver a “areté”, a virtude.
É mesmo virtuoso, em uma época de intenso individualismo e consequentes violências, uma autora nos contar uma ótima história que nos leve de volta aos valores de fundação da pólis, que nos lembre que a virtude passa pelo bem coletivo e já esteve ligada à luta heroica. Claro, pode também acontecer um sentimento de tristeza e indignação durante a leitura, exatamente por sentirmos a distância dessa heroína com relação àquilo que, como sociedade, nos tornamos. Porém, os bons livros são assim, eles não costumam ser confortáveis. Onde está a nossa “areté”? Que tipo de povo somos ou seremos? Somos povo? Qual a implicação de trocar deuses que nos exigiam grandes feitos por deuses que nos exigem dízimos? A “areté” em contraponto com a mediocridade.
Nas praias, como nas redes sociais, Penélope percebe a obediência a padrões, simulacros não só de situações, mas de pessoas: “São meio fake sim (mas o mundo, o que é mesmo?).” Até as bibliotecas em sua terra são simulacros, pois não parecem feitas para a iluminação tropical, por isso, Penélope sonha com a “Biblioteca Ideal”, sem melancolia, sem luz importada da Europa. Enquanto pensa espaços para que a beleza também transforme a cidadania — suas microrrevoluções — o horror recrudesce, o fascismo está instalado. Resta-lhe lutar, pois ela não aprendeu a capitular sem luta, seus exemplos vêm de um tempo civilizacional e de um tempo mítico. Resta-lhe fazer do Rio de Janeiro e de seu próprio corpo a sua Ítaca. A penelopeia escrita por Luciana Hidalgo não é nem aquela de quem sai, nem aquela de quem espera. É a penelopeia daquela que tenta compreender seu mundo e não se encaixa nele, é a penelopeia de alguém sem-lugar.
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A revolucionária do dia, contudo é Penélope. O vídeo do ataque da polícia à manifestante pacifista viralizou nas redes sociais. Penélope, heroína nacional. Quer dizer, heroína de uma parcela menor da nação, já que a parcela maior dessa mesma nação elegeu democraticamente o governo de extrema-direita que aí está, causando estragos. Nas redes sociais, portanto também há quem a xingue de vagabunda, baderneira, feminazi.
#têmmaiséquemorreressasfeministas
Lucas se diverte ao ler hashtags e comentários broncos sobre a namorada. Ninguém mais se choca com tanta barbaridade dita-escrita-compartilhada. O povo se indigna, recorre às redes sociais, faz piada, ri de tudo, até (e sobretudo) do que não deveria rir. Penélope ri de volta num desprezo total pelos insultos. O que ela pensa deles é muito pior do que aquilo que pensam dela.”
(p. 130/131)
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Penélope dos Trópicos
Luciana Hidalgo
Romance
Editora do Silvestre
2022