Quatro poemas de Adair Cauã Vinicius Nunes da Silva

 por Adair Cauã Vinicius Nunes da Silva__



Foto de Jordy Meow na Unsplash


I — Eles nos contaram sobre monstros


 


Eles nos contaram sobre monstros,


ditadores de bigodes tortos,


que queimavam bibliotecas inteiras


na fogueira da ignorância.


E no nome de um só, firmaram o terror.


Hitler, disseram, o pior dos homens.


Mas e as cinzas, as que ficaram


sob as sombras de suas palavras?


Cinzas de outros corpos, de outras terras


de outros mundos que eles esmagaram.


 


Churchill, com seu riso cheio de fumaça,


dizia que os palestinos não tinham direitos,


que os índios vermelhos, os negros da Austrália


nada mais eram que obstáculo à grandeza.


“Raça de grau superior”, murmurava,


e sobre os indianos, proclamava:


“Só não morrem porque se proliferam


rápido demais, como animais”.


Acredita nisso? O "salvador da Segunda Guerra",


"grande estadista"?


Herói? Ou apenas mais um


desses homens com sangue nas mãos


que chamam de desgraçado em segredo?


 


Enquanto Londres celebrava o jubileu de Vitória,


a Índia chorava sangue em Amritsar,


onde soldados britânicos abriram fogo,


manchando o chão com a morte,


um presente macabro para a coroa.


 


Mas e os gritos da América e da África?


Na Argélia, o sangue jorrava nos becos


enquanto Paris festejava suas luzes.


Os campos abarrotados de corpos silenciosos,


um massacre para apagar a revolta,


e a França, com seu sorriso republicano,


disfarçava o cheiro de pólvora e lágrimas.


 


Em Potosí, as mãos manchadas de prata,


Sangue inca esvaindo-se nas minas,


os espanhóis chamavam de império,


mas as terras tremiam com as vozes


que sussurravam debaixo da terra:


"Liberdade... Vingança."


 


Portugal, navegante de velas brancas,


escravizava corpos na África,


fortunas erguidas no cais de Luanda,


nos portos onde crianças eram mercadoria.


Os grilhões estalaram, mas as correntes nunca quebraram,


até que Palmares se ergueu,


até que Zumbi, um eco vivo,


caminhasse nos sonhos dos escravizados.


 


 


E na Batávia, os holandeses pintaram


o chão com o sangue javanês,


na Suriname, chicoteavam o futuro


para alimentar suas plantações de cana


e nas Antilhas, o chicote ecoava


como uma canção de morte e resistência.


 


Revoltas na América, na África, na Ásia.


Rebeliões apagadas dos livros,


mas marcadas nas peles de quem sobreviveu.


As águas do Atlântico e do Índico


carregam ecos dessas lutas,


e o vento sussurra nas ruínas,


lembrando que a história nunca se cala.


 


Quantos Hitleres passaram, então?


Nos portos que transbordavam de corpos,


nos trilhos que levavam povos


para onde só havia fim.


 


Os impérios nos ensinaram a temer


o mal de um só nome,


quando a verdadeira violência vestia


coroas e cartolas,


assinava tratados


e desenhava fronteiras em corpos


que nunca lhe pertenciam.


 


Monstros, disseram,


como se não fossem os mesmos


que escreveram a história com sangue


nas páginas arrancadas das colônias.


 


Mas o que é um holocausto, senão


a repetição do grito sufocado,


na boca de quem sempre cala?


 


Eles nos deram Hitler


para esconder os espelhos.


Para não vermos que o monstro


sempre teve mil faces


e muitas delas sorriem em nossas moedas.


 


II- Cicatrizes de ferro e sangue


 


Diziam que a abolição era liberdade,


mas o Brasil continuou escravo do latifúndio.


Não foi uma revolução,


foi uma transição mal disfarçada,


os donos da terra apenas trocaram os grilhões


por contratos de trabalho miseráveis.


Os negros?


Foram lançados à margem,


sem terra, sem teto,


sem o mínimo para viver.


Liberdade sem moradia,


sem saúde,


sem educação,


é uma piada cruel,


um chicote invisível


que ainda bate,


mesmo quando os olhos não veem.


 


A escravidão acabou no papel,


mas as cicatrizes


foram cravadas no corpo da nação.


E, enquanto o Brasil sangrava,


vieram os carrascos fardados.


Não era a chibata,


mas era o porrete,


a censura,


as balas nos becos,


os porões cheios de gritos sufocados.


Vladimir Herzog foi apenas um nome


numa lista que crescia na escuridão,


enquanto o império do norte,


aquele mestre das marionetes,


assistia e aplaudia,


sorrindo com o mesmo ar de superioridade,


patrocinando o derramamento


que chamavam de “segurança”.


 


E no meio de tudo isso,


torturaram uma mulher.


Resistiu, sobreviveu,


tentou falar por nós,


levantar a voz contra os mesmos algozes,


mas acabou calada,


expulsa,


porque, neste país,


quem desafia as botas


acaba no chão.


 


As feridas abertas da escravidão


nunca foram curadas.


Elas sangram até hoje,


nas vielas,


nos becos,


onde os negros que nunca foram aceitos


são alvos fáceis,


caçados por um sistema


que mudou de rosto,


mas não de essência.


A abolição?


Foi uma ilusão,


um troféu oco,


que deixou os mesmos corpos vulneráveis


a novas formas de violência.


 


E os vermes fardados,


os guardiões do atraso,


nunca foram embora.


Estão nas instituições,


no coração do país,


tentando ser o "poder moderador",


como sempre foram:


julgar, punir, silenciar.


Com o chicote escondido nas fardas,


querem ser a voz de comando


de um país que nunca foi verdadeiramente livre.


 


Tentaram voltar,


mas agora com camisas estampadas,


tentaram invadir de novo


a casa onde se decidem destinos,


tentaram fazer ruir o que ainda era frágil,


destruíram, quebraram,


como quem acha que a força bruta


é o único caminho.


E as cicatrizes de ferro e sangue


seguem abertas,


porque esse país ainda pertence


a quem controla o fuzil


e decide quem tem o direito de viver


ou de morrer.


 


 

III- A ilusão da igualdade


 


Filosofia,


uma construção erguida por pensadores,


mestre do papel,


dos tratados eloquentes


que prometem um mundo justo,


mas na prática,


a democracia se revela


um espelho embaçado,


refletindo promessas que se desvanecem


ao toque da realidade.


 


Para os trabalhadores,


os direitos são reservados


a cada quatro anos,


como um prêmio em um jogo cruel.


A cada eleição,


um espetáculo de ilusões,


um desfile de promessas


que se desfazem na bruma


assim que o último voto é contado.


Ah, a democracia!


Uma senhora de palavras doces,


mas cujos braços estão sempre ocupados


abraçando os que já têm demais.


 


A democracia é um banquete,


mas a mesa é posta apenas


para os que têm palácios,


enquanto nas favelas,


o cheiro da fome grita,


as crianças sonham com pão,


mas recebem a dor da miséria


como herança.


Nos hospitais,


os murmúrios da morte


contam histórias de descaso,


onde a vida é um luxo


que poucos podem se permitir.


E a educação?


Um privilégio distante,


analfabetos vagam


em um mundo que exige


letramento e conhecimento,


mas lhes nega as chaves do saber.


 


Os filósofos,


com suas teorias grandiosas,


falaram da vontade do povo,


da igualdade, da liberdade,


mas esqueceram de perguntar:


onde estão as vozes


dos que habitam as sombras?


Quem realmente governa?


O capital e suas engrenagens,


os que orquestram a dança


da política com maestria,


enquanto nós,


meros espectadores,


acompanhamos a peça


que se repete em ciclos viciosos.


 


O sufrágio universal,


uma conquista aclamada,


mas que muitas vezes


não passa de uma miragem


na areia movediça da indiferença.


E quando falamos em justiça,


é uma justiça seletiva,


que só enxerga os que vestem terno,


os que sentam em mesas largas,


enquanto os que habitam as calçadas


são invisíveis,


murmúrios abafados na multidão.


 


A democracia,


que deveria ser um abrigo


para todos nós,


é um jogo em que poucos


decidem o destino da maioria,


detentores do poder,


ditadores da sorte alheia.


Uma promessa de ouro falso,


brilhando apenas na superfície,


escondendo as feridas


de quem foi esquecido.


 


É tempo de revolta,


tempo de gritar contra a iniquidade,


de levantar as vozes silenciadas


e exigir uma democracia verdadeira,


onde a fome seja banida,


onde os leitos dos hospitais


não sejam palcos de desespero,


onde o conhecimento flua


como água em fonte cristalina.


É hora de transformar a dor


em combustível para a luta,


de rasgar as correntes da indiferença


e construir um futuro


onde a democracia não seja


um mero espetáculo,


mas a verdadeira expressão


da vontade do povo.


 


E assim seguimos,


com a esperança tremulando


como um estandarte ao vento,


acreditando que a mudança é possível,


que a voz do povo ainda ressoa.


Mas, em meio a promessas quebradas,


é hora de perguntar:


será que os pensadores


nos guiarão


neste labirinto de espelhos quebrados?


Ou será apenas mais uma ilusão,


neste teatro em que somos


os protagonistas sem roteiro?


 



 

IV- Tancar, tancar, tancar...


 


Na loucura que é a vida, o tempo é tirano,


os corpos se perdem


na frenética roda do cotidiano.


A pressão é um peso,


um fardo invisível,


que pesa sobre os ombros


de quem vive nessa montanha russa.


 


Choros silenciosos se conectam


nas calçadas esburacadas,


ressoando nos corações cansados,


onde a luta se transforma em rotina.


A mente,


um campo de batalha,


se agita com a ansiedade,


enquanto os sorrisos se tornam máscaras,


disfarçando a tempestade interna.


 


E para tancar o sistema,


apressam-se as almas em busca de alívio:


drogas que prometem fuga,


remédios que calçam o vazio,


café,


um elixir para enfrentar a manhã,


maconha,


o abraço da calma em meio ao caos,


cocaína,


a faísca que acende a chama


da resistência temporária.


 


Os viciados,


sem voz no clamor da sociedade,


perambulam como sombras,


como Eduardo,


que encontrou na pedra


um escape do seu dia a dia,


ou Ana,


que se esconde entre as paredes,


abraçando a garrafa


como um amante que não a abandona.


São eles,


os invisíveis,


os esquecidos,


tratados como peças


em um tabuleiro cruel,


jogando suas vidas em um copo,


em uma seringa,


trancando a realidade que os sufoca.


 


Nos becos escuros,


as histórias se cruzam:


Jorge,


um jovem que sonhou ser artista,


mas se perdeu na bruma das drogas,


e a esperança se desfez em cinzas.


E não podemos esquecer de Carla,


que trocou seus sonhos


por um punhado de comprimidos,


procurando um alívio que nunca chega.


Vidas interrompidas,


futuro apagado,


em busca de um significado


que se esvai como fumaça no ar.


 


No tabuleiro da sobrevivência,


a linha entre o ser e o ter se confunde,


os corpos se tornam máquinas,


moldados pela pressão do capital.


E ao final do dia,


o que resta é um grito,


um chamado profundo,


uma palavra que se perde na bruma,


na tentativa de encontrar


um sentido que justifique


a luta incessante.


 


A condição,


um reflexo distorcido,


reflete a dor de milhões,


onde a dignidade é vendida


em pequenas doses,


em promessas vazias.


E assim seguimos,


em meio ao choro e ao riso,


tentando tancar o que nos consome,


mas sempre à sombra da dúvida:


será que somos mais que cifras,


mais que números em um sistema?


A resposta,


tímida,


se esconde no coração


de quem ainda sonha


com um amanhã diferente.


Vicioso?




Adair Cauã Vinicius Nunes da Silva 
é estudante, natural da cidade de Delmiro Gouveia, Alagoas. Filho de dois professores, desde pequeno, nas viagens com sua mãe à capital da energia (através da extinta via da Real Alagoas) sempre despertou apetite pelas histórias da vida sertaneja dos ascendentes de sua mamãe, ao mesmo tempo que vislumbrava a recôndita, formosa e labiríntica mata branca. Deve ser daí que o entusiasmo tomou conta, apaixonado pela beleza dessa enigmática região, é aficionado desde os contos da sua terra com a "Gracilianidade" passando pelo Patativa do Assaré até o baiano Jorge Amado, e como desassisado que é, você deve estar pensando que ele aprecia a Filosofia, é... você acertou...