Um balde de água fria | Crônica de Dias Campos

 por Dias Campos__




Quem já não teve uma ambição perseguida com ardor, um ideal por que valesse a pena lutar, uma paixão a que se entregasse por completo?

E quem já não acabou sendo surpreendido com um balde de água fria derramada sobre tudo isso?

Pois esse infortúnio também aconteceu comigo.

Mas antes de contar o que houve, quero abrir um parêntese para afirmar que esse tipo de reviravolta tem raízes tão antigas que até os gregos já sentiram o seu amargor. 

Neste sentido, todos já ouviram falar da guerra de Troia, narrada na Ilíada por Homero. Depois que a bela Helena foi seduzida e raptada por Páris, Menelau, o soberano de Esparta, resolve investir contra aquele reino para salvar a esposa. O cerco dura nove anos! E os gregos (Aqueus) acabam tomando e saqueando a cidade no ano seguinte, graças a um ardiloso presente — um gigantesco cavalo de madeira, que continha soldados em seu interior e que foi transposto para aquém de suas fabulosas muralhas. 

Ocorre que, no início da guerra, Zeus, o senhor dos deuses, ainda apoiava os troianos. Ora, sua divina vontade jamais poderia ficar submetida à dos gregos, simples mortais. Deste modo, usa do seu poder para insuflar Heitor, o filho do rei de Troia, a combater com muito mais valentia. E o príncipe toma a frente das falanges e luta como um leão, o que elevou a moral dos soldados e os estimulou a avançarem contra o inimigo. 

E como concluiu Homero, Zeus “Deu a vitória aos Troianos e aos Aqueus pôs em fuga.” 

Foi ou não foi um balde (olímpico) de água fria despejada sobre as pretensões iniciais gregas? E como foi!

Fechado esse parêntese, passo a contar os meus casos; pelo menos os baldes que mais me marcaram. Só que vou me prender à fase da adolescência, uma vez que a água que me jogaram na madureza não me esfriou tanto assim.

Mas como seria trivial se eu simplesmente narrasse os próximos episódios — uma dupla relativa ao coração —, que tal se eu os indicasse por meio da literatura? Afinal, quanto mais interessante for esta crônica, melhor. 

Daí que, em Os sofrimentos do jovem Werther, Goethe conta a história de um amor não correspondido. Werther está apaixonado por Carlota, mas a moça já está comprometida com um nobre. Apesar desse obstáculo, ainda sopra no espírito do rapaz um filete de esperança. E ele vai ao seu encontro, e começam a conversar. Lá pelas tantas, a jovem resolve acabar com esse desconforto e o aconselha a procurar outra mulher. E recomenda que faça uma viagem a fim de se distrair.

Seria de se imaginar, leitor amigo, que Carlota já teria vertido sobre Werther toda a água fria do seu balde. Que nada! Veja o arremate que ele ainda teve que engolir: “Procure e encontre um objeto digno do seu amor; depois, volte e gozemos todos juntos a felicidade que só uma verdadeira amizade pode dar!”

E não é que esse trecho indica o que se passou comigo na puberdade? 

Posso garantir, no entanto, que não fui viajar, que demorei a procurar outro amor, e que, sobretudo, recusei a amizade daquela que me desprezou. – O orgulho ferido tem dessas coisas...

Mas este outro caso foi o mais traumático. E o indicarei por meio de A divina comédia.

  Dante Alighieri, então com nove anos, está brincando com seus amiguinhos na rua. De repente, para o que fazia e fica boquiaberto. É que seus olhos encontraram os de Beatriz, que contava a mesma idade. Depois de vencer a timidez, vai ao seu encontro. E após algum tempo sem conseguir abrir a boca, pronuncia poucas palavras, que são correspondidas. Ambos estão apaixonados! – infantil e puramente, é claro. 

Mas a menina de olhos esverdeados não se unirá a ele, vindo a falecer aos vinte e quatro anos. 

Mesmo passado bastante tempo, e já casado com outra mulher, Dante ainda sofre muito pela morte de Beatriz. E cai em perigosos desregramentos.

  Para reerguê-lo, alternativa não teve Beatriz senão a de mostrar as penas que no inferno aguardam os pecadores. E roga ao poeta Virgílio para que o guie nesta cruzada. 

Não será preciso mencionar as cenas indescritíveis desta viagem. O fato que nos interessa, entretanto, acontecerá quando Dante, depois de ter peregrinado pelo inferno, passa pelo purgatório e alcança um planalto. E antes de chegar ao paraíso, consegue entrever, através de uma nuvem de flores, “formosa dama envolta em verde manto, trajando vestes cor de fogo.” Logo após, sem que seus olhos pudessem reconhecer quem era, o viajante começa a perceber a sua profunda influência. Por fim, ele pensa em compartilhar o que se passava com seu guia, que já tinha partido: “Não me resta nas veias uma só gota tranquila de sangue, eis que me sinto arder nas chamas do amor antigo!” Sim, depois de testemunhar horrores inimagináveis, ele finalmente reencontra a sua alma gêmea!

E quais seriam as palavras que deveriam ser trocadas entre pessoas que se amam, que foram separadas por imposição do destino, e que conseguem se reencontrar depois de tantas décadas? Pelo que transcrevi até o momento, você já teria condições de deduzir quais seriam as de Dante. Mas, e as de sua musa? Pois veja o que ela falou, e qual foi a consequente reação: “‘Não te enganas: sim, sou eu, eu, Beatriz! Como ousaste subir até aqui, ao monte? Não sabes ser sítio reservado ao homem ditoso?’ Baixei os olhos para o rio, mas, vendo minha imagem refletida nágua, volvi-os para a relva, tanta vergonha me havia tomado.”

Haverá de concordar comigo, amigo leitor, que não era bem essa a recepção que Dante tinha em mente... Ou, dizendo de outra forma, não um, mas, sim, dezenas de baldes de água polar foram entornados sobre suas esperanças!

Pois assim aconteceu comigo. 

Há, porém, um lado positivo. Depois que reencontrei o primeiro amor, e a chama do desejo reacendeu, a invertida que tomei foi suficiente para que eu abandonasse para sempre todo e qualquer platonismo. — Menos mal que não precisei estagiar no inferno…

Mas sejam nos amores adolescentes, sejam nos assuntos bem mais sérios, o fato é que ninguém jamais gostou de levar um balde de água fria.

Pudera! Às vezes saímos tiritando!…

Só que esses reveses, por mais doídos que sejam, têm, sim, a sua função educativa — são eles os verdadeiros aguilhões do nosso amadurecimento.




Dias Campos
 é autor do romance As vidas do chanceler de ferro, Lisboa: Chiado Editora; Colunista do Jornal ROL; do (atual) site Cultura & Cidadania; do Portal Show Vip; e do (atual) portal Pense! Numa notícia; autor de diversos textos literários; autor e coautor de livros e artigos jurídicos.