por Raphael Cerqueira__
Jr Korpa |
Tiro a jaqueta. Corroborando o senso comum: aqui, nesta cidade, faz as quatro estações no mesmo dia. Na madrugada choveu bastante, os taxistas têm razão. Eu assistia a uns videozinhos, impróprios para leitores menores de dezoito anos, quando as trovoadas e o aguaceiro silenciaram o rilhar dos trens. De manhãzinha esfriou, e agora este solão gritando por cigarras e tanajuras.
A senhorinha com sacola da Americanas faz um muxoxo para o mendigo que pede “uma ajuda pelamor de Deus”. O pombo de pescoço-esmeralda anda pra lá e pra cá, sem rumo, feito a maioria dos citadinos. Feito eu, quando me ponho a escrever.
O mendigo envereda pelo parque, a senhorinha entra num Kwid vinho. O pombo arrumou uma distração: diante de mim, todo empertigado, me perscruta.
De repente, vem uma barulheira dos lados da catedral. Assustado, o emplumado inconveniente desaparece de minhas vistas. Carreata? Motociata, como virou moda nos últimos tempos?
Puxando o comboio, uma viatura de giroflex aceso. Logo atrás, o caminhão dos bombeiros, estridente sirene, conduz a imagem da Padroeira envolta em flores. Buzinando e cuspindo fumaça, os veículos tomam a avenida feito uma horda de sei-lá-o-quê. Um deles toca, bem alto, Nossa Senhora. Todo ano, nada novo.
Sentado no parque, espero um leitor. Não declinarei seu verdadeiro nome, para evitar um processo no lombo. Chamá-lo-ei (um leitor sempre merece o emprego luxuoso da mesóclise) de Ryan. Assim, com ípsilon, igual o protagonista dos vídeos que me roubaram o sono.
Conheci Ryan — o leitor, não o carinha do vídeo — ontem à tarde. Eu passava os olhos por uma antologia do Braga quando, sem querer, esbarrei em seu ombro. Desculpe-me. De boa, disse, e quis saber se era um livro de crônicas que eu folheava. Mostrei-lhe a capa: gosta do gênero. Respondeu-me que sim, porém, nunca lera nada do Braga. Sugeri que começasse por O conde e o passarinho. Ele então me disse que curte Mharta Medeiros, Yvonne Miller e Antônio Prata, que descobriu recentemente, aqui no sebo, os textos do Romano de Sant’Anna e está adorando seu Porta de colégio.
Para encurtar a história: entabulamos conversa sobre literatura e, puxando a sardinha para minha brasa, comentei sobre meu livro. Para minha surpresa, Ryan se interessou. Digo para minha surpresa porque as pessoas, quando ficam sabendo que publiquei crônicas, geralmente me parabenizam, até elogiam, quase nunca abrem a carteira. Com o jovem Ryan, no entanto, foi diferente: sacou o iPhone do bolso e, pesquisando meu nome no Google, quis saber onde comprar.
Tenho comigo alguns exemplares, comentei. E feito aqueles personagens do Sabino, marcamos nosso encontro para hoje, entre dez e onze da manhã. Propus-lhe levar o livro até sua casa, Ryan inventou uma desculpa. Acho, devo ter cara de pervertido, tarado ou sei-lá-mais-o-quê.
E cá estou, no parque, à sua espera. Ou melhor, estava, pois meu leitor acaba de sentar-se ao meu lado.
Trocamos um simpático aperto de mãos, ficamos observando a procissão-carreata-motociata ou sei lá como chamam isso que vara a avenida.
Tenho pena dos enfermos, das crianças pequenas como meu sobrinho, dos autistas e dos pets. Ryan coça o cavanhaque ralo, me pergunta por quê. São os que mais sofrem com essa barulheira dos infernos, essa palhaçada desnecessária. E arremato: não entendo pra quê tanta buzinação, pra quê esses fogos... como se a santa precisasse desse alvoroço todo para se lembrar da existência dos fiéis.
Você é evangélico, a pergunta, quase espanto, se impõe sobre a barulhada. Católico não-praticante, cada vez mais afastado da igreja justamente por práticas como estas e de dogmas que considero ultrapassados, é minha resposta.
As motos e os carros finalmente limpam o trecho, vão para onde não me interessa. Em bando, os pombos retornam à calçada. Volto a ouvir os taxistas.
Vou indo, Ryan diz, já de pé. Retiro o livro da mochila. Foi mal aí, não vou ficar mais com ele. Seu passo apressado afasta alguns pombos.
Oh, e agora, o que faço com este exemplar em cuja primeira página escrevi uma carinhosa dedicatória?
O pombo do pescoço-esmeralda, do nada, brota à minha frente. Me encara com desprezo e, todo empertigado, caminha para o Paço.