por Wellington Amancio__
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Ao amigo Arthur Moreira
Estou passando por um dilema... Se devo rumar no eterno andar da lingüística, sendo a palavra sempre traidora...
Leo Barth
O que seria do poeta sem a Abstração?
Dickinson
A gente trabalha nesse campo onde não há chão.
Lamparina
[...] pensamento é fragmento fugaz do caos estruturado.
Chacal
Outra vez pensando a partir do âmbito de uma Epistemologia Metafórica, mimetizando o olhar-fogo de Mira, o entorno trazido todo para dentro do ser, nos submetemos, pois, a uma reflexão estrutural acerca da vontade da palavra e seu percurso na escrita, da fagulha mental ao ato de escrever, da ideia-pensamento ao esquema grafado em sua concretude, como expressão dada e fixada em palavras, ato seletivo de lapidar objetos do pensamento e tecê-lo ao querer. Do ator da escrita ao autor de “objetos de partilhas”, como alguém que junta coisas dentro de si para reordená-las como elementos estruturantes da sua paisagem pessoal. Porque o artista seria alguém obcecado com as pequenas afigurações que insurgem dentro da sua mente, enquanto ele pode, ou acha que pode visualizá-las. E no ato de escrever-parir, esta ecologia da palavra, quando as suas garatujas metafísicas ganham formas e sentidos comunicáveis, isto é, susceptíveis a um nível razoável de empatia escriturística, semântica e literária com o outro que o lê ou finge que o lê; é que dentro do duto fino da palavra escrita, enquanto ele escreve, a palavra cursiva e tácita, aí dentro circula algo de destilado do pensamento. E escrever requer em essência, sem ônus ao caráter, de ardileza. Esse tudo fino da palavra é espaço infinito racionalizado de fazer circular coisas e objetos do plano mental a uma vazão, no coletivo, que se pode definir como vontade de comunicar.
Em qualquer língua moderna, em qualquer lugar no Ocidente, a letra livre é a expressão mais corriqueira gestada no lugar mais alto (logo abaixo do tópos das artes), dentro do sujeito, e consiste visualmente, pela força da vontade ou não do sujeito do logos, de um tênue duto à grafite, gerado pela vontade da escrita, que é uma fusão entre pensamento, coordenação motora condicionada ao espontâneo e ao calculado, posse lúdica da norma culta e da arquitetura frasal racionalizada, segundo possibilidades semântico-existenciais. Seu percurso, geralmente sinuoso, é um desenho em si mesmo, que pretende se reproduzir sempre em sua característica padrão, mas sem nunca deixar de se misturar, de se unir, por “codicidade”, a outras letras, formando o que chamamos de palavra, frase, sentença, lanço semiótico, quando em nenhum momento seu desenho pretende reproduzir ipsis litteris a própria letra referencial (que reside, por repetição-reflexão no arcabouço mnemônico do sujeito do logos).
Uma ideia-pensamento hoje é um insight mais extensivo, por estar cuidadosa e pacientemente sendo tratado dentro da mente. Por exemplo, o começo fortemente apoteótico de um poema — que, como estrutura e composição, é tal qual uma ideia-pensamento, em sua forma, proposta e imagem — não se rende mais aos temas clássicos, na verdade, não reinventa, mas inventa temas, e desconstrói-os, num segundo momento; este exercício pela novidade tem sua face especular mantida, reconhecida e identificada por autossimilitude, através desse modus operandi, isto é, de inventar temas e desconstruí-los incessantemente, por pura experimentação que visa um télos. A letra é a mônada deste joguete, deste ardil, entre o ser e seu exterior interessante, e a letra é o que temos por hora. Sem a letra não há ardilosidade nem mônada — porque letra é mônada. Perdendo-a o ser perde as pernas e não anda; perde os olhos e não vê; perde a linguagem e perde o pensamento; por um tempo perde o ânimo em geral (como os que tinham a bílis negra), porque perde o seu contra-elã vegano em face do sangue e da carne tenra e reimosa dos deuses (carne e sangue, margens de sentidos da “coisa nova”, da inventividade, do improviso, da descoberta animadora, da valsa à orla do precipício significativo, onde pululam todos os signos lingüísticos); perde os botões da blusa do seu importantíssimo perispírito; perde tudo! Amém.
Por causa disso, como micro-estrutura do ser-que-significa, a letra se imprime num percurso nanogeográfico sobre um fundo neutro, que obedece a nanofísica dos dedos das mãos como ferramenta mecânica entre pensamento, vontade e pré-textualidades subjetivadas, que vai sendo parida sob o deslizamento da intuição e experimentação, enquanto burla-se dentro do Sentido, e enquanto se organiza logicamente (sem perder as suas contingencialidades*). Nesse sentido, por exemplo, um Neologismo é como se fosse o braço esquerdo do Homem Elástico dando tapas mezzo masoquistas na própria cara, mas apenas por brincadeira...
A memória é escrita, antes e depois de se reconhecer como jogo multifrasal de sensos, consensos, equívocos em permanências perpetuadoras (ao menos para si) em sua escrita. Realmente a vontade-de-permanência é aquilo que move a potência, ainda que mínima, do artista: o seu trabalho é realmente o de cristalizar no aqui e agora o que puder coletar e organizar (geralmente de forma lúdica) dos elementos cambiantes e rotativos dentro do redemoinho dos seus pensamentos — neste caso ele constrói um tópos adequado para esse tipo diferenciado de memória fora da sua mente. Ou como disse o nosso Lamparina: “Para eu entrever de cruzo o divino, preciso da Mimese: elaborar-me ontologicamente de Exu, patrimônio hipervivo da universo.”. Mas não é fácil. Porque uma ideia-pensamento, como exercício brasiliano feito em língua portuguesa é um ato de recolonizar-se, dentro desse âmbito interior e desconhecido onde perambula o fantasma do tupi-guarani em nós que pouco percebemos, ou não damos a devida atenção, visto que esta língua-materna, esta linguagem do austral, não aceita mimese sem empiria corpo-floresta semântica**.
Quando uma pessoa tem senso-de-trabalho, torna-se imparável. Quem soma vira parceiro; quem duvida, passa. Muita pressa nessa hora. Porque o artista não sabe e não quer saber quando parar; sempre há um projeto em seu pensamento, e pensamento é sempre afiguração na memória. Cada pessoa tem seu ritmo; os encontros, as parcerias, são submissões de ego a projetos mais ou menos imbricação de ideias sedimentares que compõem cada camada da Pedra de Sísifo, pedra de inscrever, tal que qual a Pedra de Rosetta. E contornando o velho clichê: “Escrever é um ato de resistência”, e cada um resiste ao que quiser. Escrever num livre curso do pensamento, mas num nível totalizante de resistência, de resistência sonora das folhas de uma árvore a favor da lufada, pensamento-resistência razoavelmente lógico, nada além do necessário para dizer e se sentir bem, pensamento-avante sem ser “totalitário” (porque não pretensioso a um Discurso de Verdade...). O pensamento-resistência, como dito, tal a simplesmente metaforização da sua própria epistemologia. Ou, como disse Lamparina: “Eu inventei muito, tudo é inventável. Aí é onde mora o prazer do pensamento.”
Em outras modulações mentais, do pensamento à memória e vice e versa, o pensar metaforicamente é (em um estado de leve incorporação mediúnica com as palavras, sem pretensões e modulações, num estado de estática neuronal, e aproximação essencial, por curiosidade leiga, porém atenta) exu-literatus. A incompatibilidade pensamento-palavra é desfeita — no fundo ambas são as mesmas — por uma compreensão pós-sartriana da verdade subjetiva em face da realidade estrutural e exterior; ser exu-literatus, num amalgama muito sério com a palavra, está mais para a cultura de presença, aos moldes de Gumbrecht. A experiência da presença das coisas, suscitadas na palavra táctil que dá nome, ainda que lúdico seja um nome, é tal ao mapear de elementos ativos, susceptíveis, instáveis do universo pré-significado no certe do encéfalo, ora lá onde se imprime a matiz de um pensamento que, por hora difuso, se dá à frase que se escaneia ao correr do olhar. E a ideia, segundo Arthur Moreira, que se “[...] a linguagem é o maior locutor do nosso Ego, das nossas emoções, compreensões, da nossa interpretação da realidade”, então simples palavra, qualquer palavra que por nós se preze, é um elemento estruturante do nosso ser (e esta percepção é presentificação); ainda que a palavra sozinha talvez não possa dizer muito, a palavra em si, como objeto criado no tempo e no espaço e que traduz um universo singular, é uma célula da nossa própria alma — e esta percepção é presentificação****
Dentro da mente o real é outra coisa, longe do objeto fiel à representação. O real dentro da mente é algo movente ao correr da visada, no foco naturalmente instável do olhar, como um delírio sob controle. E acerca deste delírio sob controle, Arthur Moreira costuma ilustrar que “A Linguagem é a maior, mais íntima decodificação do ser. E o ser é um delírio que observamos, sob análise, há muito tempo.*****
A letra é uma vereda; a palavra, enveredamentos; a frase é labirintificação mais ou menos com um fim e uma porta de acesso e saída. E o que digo quando sussurro com vergonha que a convicção parece uma verdade universal, se toda verdade universal é cúbica e cartesiana no certe do labirinto? Para ser sincero, há verdade universal, mas o é apenas para mim. E é tudo o que importa. A tua verdade é a porta do teu aprisco em que o teu pastor, teu alterego tece tua identidade pessoal jamais solúvel como café de mercado, e esta percepção é presentificação. Mas não se pode esquecer que há a frase, o labirinto, coisa muito mais ampla, lugar onde se pode dispensar os elementos cúbicos e cartesianos do pensamento.
Digo, pautando-me sobre o idealismo de Hegel, desconfio enfim que o ideal, que pinto e repinto agora, é mais fiel ao real do que o objeto que reproduzo, porque este, de fora, não é meu e empoeira-se contra o tempo, e dentro da minha pintura o tempo é como um lobo domesticado. Todo ideal é válido apenas enquanto habita a subjetividade do sujeito; um ideal coletivo apenas convence, num debate provisório, se é apenas elemento estruturante da comunicação, como uma letra, uma palavra ou uma frase. Seu sentido intrínseco, isto é, o conceito que carrega, deve ser entendido como ficção; fora disso, as bestas-feras fazem guerras, se encararem tudo dogmaticamente como verdade. Queremos dizer que qualquer teoria, séria ou o seu contrário, deve antes ser compreendida como um gesto despretensioso no tablado. Em outras palavras, do ponto de vista da literatura, para que me serve a Revolução Copernicana senão para reinventar um poema? Levar muito a sério esse ideal de Sol no centro do Sistema Solar pode transformar-se em aglomerado de mentalidades totalitárias. Antes de tudo, brinquemos com o Sol, contemplemos sorridentes o nobre Nicolai Copernico lavando a bunda no rio Elba. A literatura, e especialmente o poema, pode-nos curar das excessivas seriedades, da delongadas expectativas. Nos detenhamos na feitura do poema, e esta percepção despretensiosa da realidade é presentificação.
Quem se esquiva e quem estranha este ambiente inóspito em que antes esboço com calma a minha ideia? Eu teria neste exercício “pretensões de deus”? Não. É que na loucura toda licença poética é permitida. Logo as diferenças modernas entre o ideal e o real, que mobilizavam os homens dos séculos passados a fazerem merda belicosa, são anuladas na vida real, no cotidiano, em que a vida é livre, e isto desde sempre, desde a Caverna de Lascaux. Levar, pois, muito a sério é um contra-senso. Ideal e real não existem fora da subjetividade, e esta percepção, ou esta convicção fingida mas empolgada, anti-blasé, coisa de flaneur, é já presentificação, se é que me entende.
As possibilidades dos objetos da nossa imaginação são sempre um reflexo das coisas que pré-existem no tópos metafísico de uma realidade sutil e acessável. Contentamo-nos a esta e nos inspiramos em busca de múltiplos mimetismos, tal a um ensaio de erros e acertos em busca o real (que cisca gracioso no quintal matinal do ideal); figura que entrevemos, reflexo das coisas, se mostra oblíqua: real-ideal, realidade porosa.******
E se ensaiássemos, mesmo que ficcionalizando, haver a possibilidade de uma realidade própria dentro da mente, ou melhor, de uma hiperrealidade feita de sinapses, auto-profecias sussurrantes, plano astral e poesia, por isso mesmo maleável e mais realística do que este tempo presente, hic et nunc? Do mais profundo-rochoso do cerne da Terra eis este pensamento, ou “protologia” que amansa a fera dentro de nós: todo mundo escreve por teimosia. Não há vaidade ou sofisticação própria ao escrever; o que fazemos é perder tempo conosco, deixarmo-nos queimar como uma vela; escrever ao modo sotereologia em busca das densidades pessoais, intramentais, inventadas teogonias.
Toda matéria possível a ser apreendida no arcabouço do pensamento é antes de tudo dada por afiguração. Digamos que o objeto pensável se mostra sempre como figura (e a figura é um ser vivo! um elemento biótico e estruturado a partir de certas sabedorias, feito da plasticidade própria da nossa mente ornada de confetes). O objeto do pensamento é imediatamente visual, tem forma, perímetro, densidade, textura, cor e quem sabe uma linha (no sentido de linha que tangencia sabe-se lá para além-onde do pensamento...). Dito isso, que todos os santos nos protejam! Fora da palavra o que resta são coisas de Anunáqui.
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*A letra não é não-contingente como um número matemático. A letra no contexto da vida parece ser a interface, o elemento periférico de que se reveste o Caos! Em outras palavras, num sentido mais cabível para este ensaio, a letra é o fraque do Caos quando este se senta a primeira fila para ouvir Utrenja de Krzysztof Penderecki.
* * A Teogonia nos diz que Exu é um ser de imensurável sabedoria translinguística, que se comunica por insights próprios, de léxico e conceitos próprios, não palavreantes, menos como sentido e mais como presença, especialmente a uma comunicação, no cerne do perispírito humano, mais afigurada e mais metafórica e alegórica, sentida, experimentada de dentro. Este ser potente é nascido-fruto de uma relação ontogênica transcendental perfeita e harmoniosa entre dois reinos: Animal e Vegetal. Logo, Exu não é bicho (Id) ou homem (Ego), nem Arborosidade em si (Alterego), mas uma síntese perfeita de tudo, por isso o seu Arquétipo é o Cruzo, a Encruzilhada, em que eu seu cerne Gira-reina perpétuo um redemoinho!
*** Uma antiguíssima tradição diz que a Pedra de Sísifo é pedra de estar sobre as costas do Iniciado e é Pedra de sina, isto é, de rolar para baixo e depois ter que subir, mecanicamente. Tal condição perpétua de Pêndulo, de subir-descer, esta Pedra de Sísifo, decorre da sua importância intrínseca, como materialização da alma humana, por ser sulcada de letras, destino pedra-de-inscrição, por conter um conjunto de signos, mapeação do ser, registro da memória e do pensamento humano. É esta Pedra que Sísifo se condena a lidar perpetuamente.
**** Ver conceito de “presentificação” em Hans-Ulrich Gumbrecht.
*****Nós somos Linguagem e a Linguagem é o delírio sob controle. Nós somos essencialmente, por assim dizer, numa autoleitura ontológica, Linguagem sob delírio, Linguagem sob controle de Que.
******No capítulo 133 do desenho animando de Stephen Hillenburg, Sponge Bob diz que [...] o melhor lugar do mundo para um autor é viver no fundo do mar, pois a celulose do papel, muito passageira sobre o efeito d’água, convida o autor a repensar se não seria melhor escrever sobre as próprias escamas, isto é, epiderme.