Cinco poemas de Christian Dancini

 por Christian Dancini__


               

Korpa
                                                                      
HOJE, ÀS 17 HORAS. (ou HXXX RXXXXXX)


Há, dentro, um ciclo vicioso de perdas. 

Não sabia que a vida era perder amigos; e

se não há outra solução, então passemos o pente fino

nos cabelos dourados da razão: expelindo estrelas como piolhos.

Eu segurei tua mão assaz, suspensa no mar, toquei teus pés

com meus olhos castanhos: margaridas despetaladas cobriam

o chão de relva serenada. Há, fora, o que possuímos, mas 

que não podemos tocar — tal inefável —;  porém, eu a toco, com 

o vapor emudecido que salta para fora da minha boca: é frio.

O amor feriu com seus dentes caninos a parte superior dos meus lábios.

O amor: sendo atemporal, luminescente, faz o coração meu e teu bater

exatamente no mesmo compasso. Simbióticas trevas da noite, 

eu queria renascer em teu útero; adormecer, pétala por pétala, na vastidão 

do teu pulso rasgado pelas lâminas que afligiram afoitas a tua pele.

O amor: fina pele transparente. O amor: luz que guia meus passos. O

amor: roupas para lavar — “a janta já está pronta?”. Siriris pousando

na boca do crepúsculo. O amor: — “ já fizeste o café?”, — 

“sim, e as torradas

estão no armário de baixo” —. Sonho? Sonho. 

Tua boca, pérola parda cerrada.

O amor: teu lábio superior sujo de margarina. 

— “Como foi no trabalho?” —.

Massageio teus pés e colocamos para 

assistir na televisão um filme de Tarkovsky.

Tu adormeces, eu sorrio olhando para ti. Sei que é um sonho. 

Sei que logo irei acordar. 

Mas por favor, deixem meu destino ser outro, deixem ela ficar.

O ar quente de outono cortava a brisa que perpassava a janela e a porta.

O amor: ar quente, sonho, sono volátil; vigília. 

O amor: soco seco na boca do estômago, que desponta no horizonte, tal sol.

O amor: “— vou tomar banho, querido” —. “— A toalha está no varal —“.

O amor: imperceptível, detalhista, fulgura. O aroma do fim-de-tarde róseo, 

céu escarlate. E então percebo, 

não queria estar em nenhum outro lugar,

havia chegado. 

Queria que a vida me deixasse ser feliz por um instante, pois,

a cada minuto que passa, o tempo vai se calando, 

imbuindo significados,

como se soubesse cavalgar silêncios, 

na tua boca suja de margarina, às 17h 

de um domingo, 

onde começa o resto 

de nossas vidas.




GXXXXXXX NXXXX


No limbo, 

um açoite. 

Nas madrugadas, a efemeridade jaz. 

Toquei teus pés e alcancei o Olimpo. 

Agarrei as profundas raízes 

com minhas mãos nuas. 

São teus lábios que mordem o papel

em branco, entre realidades. 

Tu me enlouqueceste, assim que

perdeste o medo de cerrar os lábios, 

urdindo, dizendo solidão 

a cada palavra-ato jogada ao vento, 

capturadas pelos meus ouvidos.


Há um escafandro prendendo meu corpo debaixo d’água

; há borboletas

sincronizadas em meu esôfago, 

e nada mais que isso. Mergulho — profuso —

em teus olhos esticados, 

quando me acalentavas todas as manhãs;

quando choravas a cada palavra declamada 

pelo meu coração 

que adormecia na garganta. 

Quando tu enleia meus fantasmas, minhas

sombras formam atrito. 


Eu te devo um sorriso, pois era tudo que querias de mim.

Mesmo assim, a cada passo dado, tu recuas também

: é como se

eu não me movesse até tu

te emaranhar com o horizonte e mesmo assim,

mesmo sem alma, putrefato, 

com o corpo em desordem e a mente

em dilúvio, 

tu ainda flutua sobre cometas e estrelas cadentes. 

Teu toque: 

um buraco negro;

teu olhar pusilânime me destrói, 

eu escrevo para te alcançar 

dentro de um fogo que não queima, mas 

arrefece; 

dentro de um tornado

que brilha, exulta, mas 

não assola: 

o máximo que posso te dar é 

uma palavra,

e dentro dela, um espírito quebrado. 

Mas tudo está ruindo, e eu fujo

para dentro de todas as auroras, 

onde teu coração faz contato com o céu,

onde tu impeles um rugido, 

que cicatriza meu peito em prantos,

sem nunca sequer ter lido a primeira palavra deste poema.



JXXXX GXXXXXXX


No asfalto árido, 

meus pés nus se alimentam 

do vapor da água da chuva.

Ouço teus passos com um sorriso

a pular poças d’água imanentes.


Eu gostaria de entrar nas cavernas 

macias do teu útero,

dizer a verdade enquanto lágrimas escorrem.

Eu gostaria de habitar

— vociferando — tuas pálpebras, 

e me fechar em um silêncio agressivo,

totalmente alheio às casas que 

desabam no horizonte, engolidas pelas ondas

do “talvez”.  

Sim, eu gostaria. 

Eu pretendo adormecer a paixão ferida; 

pretendo 

engolir o pranto, 

até a garganta secar, completamente. 

Porém, já sei que aquilo que fulminou uma vez 

— como um raio — jamais

fulminará novamente.

Eram mais que palavras, 

eram também fúria densa de 

névoa cinzenta.

Eram também os ossos dos teus pés 

em chamas, latejando.

Ainda não esgotei de sentido a tua ideia. 

Dizias sonho na imprecisão das nuvens;

tempestades em uma folha em branco, 

que urravam. No asfalto árido,

aturdido, inerte, perplexo, 

pasmando qualquer um que passasse com tamanha 

solidão, com a tremenda sordidez. 

No meio-fio, um frio, um silêncio, a Terra

girando, rodando, pragmática, invencível. 

Cada palavra deve ser como um raio,

e fustigar o céu, brilhar, atordoar. 

Eu gostaria de alcançar um panteão com a 

ponta da língua, 

dizer as verdades que muitas vezes sufocam. 

Pois é frio aqui. 

E estou só novamente. 

Caminho pelas veredas, na beirada da rua,

para não me sujar de barro. 

De repente tudo fez sentido. 

E eu questiono: “Se eu morresse tu irias 

sentir minha falta?” 

E então, como num estalo percebo: 

eu já tinha morrido para ela

há muito tempo. 

E ninguém foi ao meu enterro. 

E ninguém chorou em cima do caixão.

Agora, perdido entre quimeras

hermeticamente vazias, 

eu planto meu crânio perto de um pé de boldo

; então,

uma flor nasce e sorri para o céu, 

e o céu sorri de volta, 


e tudo está exatamente 

onde deveria estar... 

por toda eternidade.







OU O TEU SILÊNCIO 


Teu frêmito divagando proporcionalmente em um quilômetro por hora.

Teu silêncio rebenta costa-dentro; como se, luzindo, velejasse o mar

das minhas esperanças; como se escalasse as montanhas da perdição.

Este é o fim, não há nada além de névoa e trevas, matéria escura e gritos

de crianças perdidas. Este é o fim de algo que nunca começou, mas também 

o começo de algo que nunca irá terminar e sim, como uma metamorfose, flutuará

para dentro dos meus poemas, pungentes. As loucuras das casas que ardem

de saudade; a vida que nos deixa a cada suspiro; 

a poesia que substitui o revólver.

Tua constante intermitência me aflige, agressiva. E como um soldado ferido

por uma bala voraz, eu sangro pela boca, o sangue toma forma e, 

rígido, se transmuta em palavras; palavras estas, com agorafobia. 

Tombo, deste para outro mundo. E meu lar é agora o assovio dos pássaros,

que convergem em direções opostas, 

para acabar com a palavra,

e recriar as velas que incendeiam um abismo profuso,

como um chão a ceder; em pé, só.





ELEFANTES SONÂMBULOS 


Não consigo esquecer a faca que 

rompe o papel para além do obscuro. 

Meus poemas 

são a subversão palpável 

de elefantes sonâmbulos, criando 

vasos sanguíneos telúricos.

Eu devoro santos e malditos e os trituro em palavras, quase como

um pássaro azul perdendo seu fôlego.

À noite, um amálgama de interjeições: 

meu deus! Quem sou eu?

A música é azul, os mares, verdes; inclino minha cabeça em vertigem,

oceanos transbordam da minha 

garganta forrada de espinhos. 

O poema é para ser, longe do sentido.

O poema deve existir e alcançar quem precisa.

E eu sou um poema tremendamente ensandecido, incontrolável,

tal qual deuses selvagens,

que impelem aos milhões para fora da ejaculação precoce

de um espírito em desordem.








Christian Dancini publicou três livros, Reminiscências pela Embuscadasartes, onde o prefácio foi o de Eduardo Agni e do Renato Gonda, contando com um poema sobre o livro de Renato Gonda e ilustrações de Emerson Santana; Pleroma pela Opera; e Dialeto das Nuvens pela Patuá (que ficou na semifinal do prêmio Oceanos na categoria de poesia). Publicou dois audiolivros no canal Iba Mendes: Crepúsculo dos Corpos e Fragmentos de Uma Aurora (ambos musicados por Eduardo Agni). Colabora com diversas revistas: Mallarmargens, editora trevo, Quiasmo, Kametsa, Deus Ateu, Arquétipos, Acrobata, Diversos Afins, revista figueira, Ruído Manifesto, etc.