Kayron Kaic: Autor revela os bastidores de seu primeiro livro de contos

 por Kayron Kaic__



Kayron Kaic compartilha os processos criativos e desafios por trás de sua escrita, que vai desde a inspiração inicial até o lançamento de seu primeiro livro de contos. Com influências que vão de Edgar Allan Poe a Clarice Lispector, Kaic nos conta como a escrita se tornou uma forma de expressão pessoal e como seu novo livro, que em breve será publicado, reflete suas emoções e descobertas. Entre anotações em bloquinhos e o impacto das artes em sua criação, ele nos guia pelas peculiaridades de sua trajetória literária e revela detalhes sobre as histórias que compõem seu esperado lançamento.


1. Qual foi a sua inspiração para começar a escrever contos? 

Sempre gostei muito da arte de forma geral, desde criança assistia muito filmes e novelas. Adorava ouvir música e lia muito poesia. Comecei a escrever poesias e imaginar roteiros de novela e de cinema ainda na infância. Mas a minha relação com contos só se intensificou na adolescência quando tive contato com alguns contos do Edgar Allan Poe. Já na universidade, trabalhei com a leitura e análise de outros tantos, isso me impulsionou a transformar as minhas ideias em histórias. 


2. Como você desenvolve os personagens e os cenários em suas histórias?

Acho que o escritor é alguém de uma sensibilidade bem apurada, eu, particularmente, sinto que minha mente está sempre criando, tendo ideias, imaginando coisas. Quando surge uma boa ideia, eu costumo anotar em um bloquinho de notas ou no celular e vou pensando sobre. Quando sento para escrever, nem sempre tenho a história pronta. Às vezes tenho o final, tenho o início, tenho só anotações sobre o personagem ou sobre o espaço, mas à medida que começo, novos insights vão surgindo. Acho que escrever é um trabalho manual bem árduo. Cada personagem, quando vou escrevendo, é que vai me contando a história e o que acontecerá. Procuro manter uma relação íntima com cada um dos personagens que escrevo para conhecê-los e saber como transcrevê-los — nem sempre acerto de imediato. Sou um pouco metódico, geralmente atribuo músicas, citações, outros personagens, cores e demais referências aos meus personagens, assim vou enxergando eles com mais clareza. A partir deles é que surgem os cenários. 


3. Qual é o maior desafio que você enfrenta ao escrever um conto?

Não vivo da escrita, tenho uma profissão que me exige muito trabalho. Sou professor e sempre há algo para fazer. Tenho aulas para preparar, material para estudar, provas para elaborar ou corrigir, projetos para conduzir, então tenho uma vida bastante corrida. Além disso, faço mestrado — o que me exige muito tempo — e, antes disso, fiz uma especialização, eu gosto de estudar coisas específicas e isso faz com que eu dedique tempo a essas atividades. Logo, a minha principal dificuldade é sentar para escrever. Por isso anoto tanto. Gostaria de escrever todos os dias, mas não é possível ainda. Quando estou escrevendo, cada experiência de conto é muito particular, pode ser que a dificuldade de um conto, não seja a de outro. Mas, na maioria das vezes, a dificuldade surge quando ainda não tenho o personagem claro para mim o suficiente. No entanto, gosto de desafios. 


4. Quais autores ou livros influenciam o seu estilo de escrita?

Edgar Allan Poe foi quem me despertou para a escrita. Cecília Meirelles me inspirou a olhar o simples e o cotidiano. Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector me influenciam fortemente na construção narrativa e criação de personagens. Mas poderia mencionar outros autores que me inspiram bastante como Caio Fernando Abreu, Sylvia Plath, Flávio Cafiero, Conceição Evaristo e muitos outros. Leio bastante, sou resultado de muito do que vou lendo. 


5. Como você lida com o bloqueio criativo e mantém a produtividade?

Sou muito ligado às artes, então a música, o cinema, as artes plásticas, a própria literatura sempre me ajudam muito a sair do bloqueio criativo. E, como trabalho com gente, sempre há algum conflito, alguma situação acontecendo que dá aquele estalo e me empurra para a escrita.


6. O seu primeiro livro de contos deve sair em breve. O que os leitores podem esperar dele? Há algum tema central ou mensagem que você deseja transmitir?

Estou muito empolgado, é a realização de um sonho do Kayron criança e adolescente, ou seja, é algo que cresce comigo há tempos. E é fruto de muita dedicação, pesquisa e esforço. Sou muito ligado à cores, aos sentidos e significados que as cores evocam em nós, o meu livro evoca uma cor em específico e cada um os contos é como um tom distinto dessa mesma cor. Os leitores podem esperar um misto de emoções e de histórias. Algumas mais silenciosas e intimistas, outras mais barulhentas, mas todas muito ricas, modéstia à parte. Entre o percurso do primeiro ao último conto, acredito que muitos sentimentos e interpretações serão evocadas, mas creio que a principal é a esperança. A certeza de que, apesar dos desencontros e descaminhos, podemos voar (guardem essa informação, rsrsrs).



7. E como foi o processo de criação do seu primeiro livro? Alguma história ou conto que tenha sido particularmente desafiador ou gratificante de escrever?

Os contos do livro foram escritos desde 2017, mais ou menos, alguns levaram anos até serem concluídos, enquanto outros foram escritos em uma noite (claro que não estou contando com a revisão e reescrita). Foi bem desafiador, mas também foi um mergulho em que pude alcançar lugares que queria alcançar em minha escrita. Estou muito feliz com o que vem por aí e muito orgulhoso também. Há um conto chamado “Ismália” que levou quase cinco anos para ser concluído. Eu o havia escrito em um papel sulfite A4, durante alguns intervalos do trabalho. Quando estava perto de finalizar, não achei mais o papel. Desisti. Depois de um ano, mais ou menos, decidi reescrever de cabeça. Deu muito trabalho. Achava que o que tinha perdido estava ótimo e nada do que escrevia chegava próximo, mas fui escrevendo. Quando finalizei, fui um homem muito feliz rsrs. Acho que ficou muito bom. Fiquei feliz por perdê-lo antes, pude aprimorá-lo de outra forma.



Leia o conto Sete:


O primeiro dia que ele não veio, meu peito batia forte, ainda não havia rasgo, mas já doía uma dor-fria-nos-ossos. Mas eu sou otimista, apesar de trágica, grega, dramática, shakespeariana, sou otimista. Coloquei um samba e dancei, tentando me convencer de que era feliz, para espera-lo. Pulei com Caetano e cantamos em uníssono: Não saia do meu lado, segure o meu pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixo, acho que a chuva ajuda a gente a se ver. Venha, veja, deixa, beija, seja o que Deus quiser. Mas de repente comecei a pensar que Deus me queria triste mesmo. 

Segurei o choro e sambei firme. Ele é um homem ocupado e isso não é o fim do mundo pensei, justificando o seu ghosting. Desde a infância tive o problema da raposa e se tu vinhas, por exemplo, às quatro da tarde, desde às três eu começava a ser feliz. Meu lugar na prateleira sempre foi muito abaixo do lugar em que eu colocava os outros. E a frase sinto muito sempre me foi genuína demais. 

Dormi com os olhos marejados, tinha começado a ser triste desde às três da tarde. O coração já dava pequenos sinais do estrago. Pararia? 

No segundo dia, acordei cedo, fingi que não queria esperar por ele, mas não enganei nem a mim mesma. Apelei pro Chico, quando adolescente, queria casar com o Chiquinho. Sentia que seria feliz casando com um homem que escrevesse: Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa. Era ele quem eu queria amar. Tinha certeza que se o Chiquinho me dissesse que viria, ele viria. Chiquinho era meu ideal de homem e tinha a sensibilidade que eu pedi a Deus. E eu tinha urgência em ser tratada com carinho e com afeto. Não eram oito da manhã e eu já balançava o meu corpo para lá e para cá enquanto, repeti com meu marido-ideal-primeiro-amor: Quando chegar o momento esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juro. Todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro. Deixei as lagrimas rolarem e cantamos em coro: Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar. 

Nesse dia eu odiei ele por não ter vindo. Com todo o meu coração eu o odiei. Praguejei-lhe por todo poema de amor que ele me fez escrever e puxei na memória todo e qualquer motivo que me fizesse aumentar o rancor. Respostas secas. Sumiços. Todas as vezes que ousou não me olhar nos olhos. Quando foi incapaz de ouvir meu coração congelando e se partindo em pedacinhos. Quando não juntou os pedacinhos. As desculpas vazias e um novo partir. Era esse o eterno rasgar e remendar que o Guimarães Rosa falou? 

No terceiro dia, foi a vez de me odiar. Guarde um pedaço de mim, um cheiro no lado da cama, seu gosto na ponta do queixo, meu sangue escorrendo no seu peito. Fui embalada por Gal. Não levantei da cama. Estava doente de amor. Nem um fucking-sinal-no-céu. Esse miserável me odeia, pensei. E a Gal também. Quero o brilho cortante desses cacos de vidro. Palavras no corpo, respostas ao vento. Eu era o próprio jovem Werther. Odiei que não tinha minhas próprias dores e era obrigada a cria-las. Lembrei de Clarice, a Lispector. 

Eu sou mais forte que eu. Lembrei que li essa frase na epígrafe de um livro da Clarice, quase um ano antes e ela cresceu dentro de mim a cada dia. Meditei como um mantra. Precisava acreditar, mas meu coração sangrava. O terceiro e o quarto dia não escureceram. Foram seguidos. Minuto-após-minuto. Hora-após-hora. Um dia retilíneo e horizontal. Durante o quarto dia inteiro pensei sobre minhas identidades, e repeti que Eu sou mais forte que eu. Eu sou mais forte que eu.

De tarde, eu lembrei da infância, pequena e brava. Eu me sou tão difícil ainda. E é tão ruim me culpar. Uma das lembranças mais vívidas que eu tenho da infância é a de ir à algum lugar com a minha irmã e ela sempre falar com as pessoas. Sempre conhecer pessoas. Sempre saber o nome delas. Jovens como ela, crianças, adultos ou, principalmente, os idosos. Ela tinha um fascínio pelos idosos. E eu queria ser como ela. Queria conhecer gente. Saber de gente. E, genuinamente, ouvir as histórias e poder sair falando com as pessoas na rua, desejo bobo de criança.

Agora, jovem adulta, uma mulher pós-moderna com todas as implicações que esse termo pode trazer. Antes, queria ser plural. Adorava química, literatura, msn, flogão, Orkut, facebook e novela. Gostava de jogar vôlei, uno e dominó. Cortava artistas das revistas e perdia a tesoura. Apanhava porque perdia a tesoura. Chorava e achava a tesoura. Uma semana depois. Cortar papel, perder tesoura, apanhar, chorar e achar a tesoura. Muitas vezes. Até substituir esse hábito por filmes.

Adorava assistir filmes, fazer teatro, bolo de cenoura com calda de chocolate ou bolo de chocolate com calda de chocolate. Criar histórias na cabeça e fingir que estava atuando. Todos os dias um novo filme, série ou novela. Até inventar a escrita. Escrever muito. Escrever o tempo todo. Ler Cecília Meireles, ler Vinícius de Morais. Importunar a família inteira pra interpretar Os Saltimbancos, com as músicas do Chico Buarque, comigo. 

Chorar. Ir pra frente do espelho e chorar. Ver o meu rosto chorando. Começar a rir. Escrever por seis dias um monte de história sem pé, nem cabeça. No sétimo dia descansar. Brigar também. Adorava brigar. O que você quer ser quando você crescer? E se eu for mochileira? Hippie? E seu eu for freira? Perdão Santa Teresa, mas eu dobrei e passei pra próxima. Tinha fetiche em não passar fome. Precisava de um emprego. Fiz o que pude, podia pouco. 

Durante a noite quis ser singular. Desisti de ser plural. Era umas sete da noite quando reverberou no meu peito a frase da professora na faculdade: Não sejam medíocres! NA FACULDADE, MEU DEUS, EU ESTAVA LEMBRANDO DO PERÍODO DA FACULDADE. Era o fundo do poço! De vez em quando, quando me pego me pregando uma peça, a voz dela surge alta e clara: Não sejam medíocres! 

Jurei que quando acordasse seria singular e não seria medíocre. Jurei tudo isso deitada, com o nariz entupido e a cara inchada. Estupidamente-medíocre.

Às dez da noite do quarto dia, percebi que sempre digo que vou conseguir e que vai dar certo sim. Evito me preocupar em demasia. Porém, sempre me desespero achando que não vai dar nada certo e que já deu tudo errado. Mas se alguém me pergunta, eu digo que vai ficar tudo bem. Haveremos de amanhecer. Sou otimista. Me preocupo se estou reclamando muito. Não quero ser rabugenta. Tenho medo, por mim, de me ser intolerável. E repito que haveremos de amanhecer. Quase me convencendo de que sempre amanhece. Eu sou mais forte que eu.

  No final do quarto dia, a Liniker me fez questionar se a gente se amava mesmo. Ele ainda não tinha voltado e eu já tinha me perdido. De olhos fechados, confessei baixinho que eu me encho de esperança de algo novo que aconteça. Quem despetala a rosa estará lá pro que aconteça? Nuns dias sou carente, completa, suficiente. Quero amor correspondente pra testemunhar. Dormi num canto-pergunta: Quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida, quem me chamará de amor, de gostosa de querida? Que vai me esperar em casa, polir a joia rara, ser o pseudofruto a pele do caju? 

No quinto dia, esqueci tudo que pensei no quarto dia. Chorei copiosamente. Não houve música. Sofri por ter de seguir o dia inteiro com um rasgo no peito que a cada passo sangrava e lembrava: Tá doendo. Tá doendo. Tá doendo. Uniformemente. Ao compasso do bater do coração. Ao mesmo tempo que a ferida chorava e deixava escorrer seu líquido vermelho.

No sexto dia, desisti de espera-lo e fui caminhar, correr, caminhar-correr. No fone, o brilho do sol-Milton raiou. Corri dele e de mim, Com sol e chuva você sonhava que ia ser melhor depois. Você queria ser o grande herói das estradas. Tudo que você queria ser. Em casa, limpei tudo. Fiz uma faxina pra esquecer que o esperava e esqueci. Dormi cansada. Cansada e feliz. 

O sétimo dia chegou sem se anunciar. Estava escuro ainda quando o sol surgiu sorrateiro. Iluminando tudo. Amanheceu. Abri todas as janelas pra amanhecer em mim também. Me senti forte. E viva. E amanhecida. Repassei o que faria no dia. Queria ser produtiva, mas se eu não fosse também estava tudo bem. Fiquei feliz. Eu era mais forte que eu. A manhã passou rápida. 

Pela tarde, Vercillo me elogiava em terceira pessoa: Ela une o mar com o meu olhar. Ela só precisa existir pra me completar. Eu era a Amélie Poulain quando entrega a caixa ao Bretodeou. Tinha descoberto a vida. Viver era bom. E eu era boa. Caminhei pela casa flutuando. Me deixei ser amada pelo Vercillo. Eu merecia. Eu era tudo aquilo mesmo. Quando bateram à minha porta, fui voando ao encontro da maçaneta. Eu era uma mulher leve.

Ele voltou no sétimo dia. Pediu desculpas pela demora e continuou como se não tivessem se passado sete atos em minha vida. Quis continuar de onde tinha parado. E eu deixei que ele falasse. Me elogiou. Falou que lembrou de mim. Me olhou nos olhos. Sorriu sedutor. Demonstrou preocupação. E eu fui lhe perdoando e fui sorrindo com seu sorriso. Aceitei que fiz muito barulho por nada. Eu fico inventando sofrimentos. Eu fico inventando dores.  Me convenci. Ele é um homem ocupado e isso não é o fim do mundo. Já tem três dias que estamos sorrindo. Tenho me policiado pra não ser tão eu. Se eu não for tão otimista e trágica, grega, dramática e shakespeariana, acho que ele não vai sumir outra vez.




*Kayron Kaic, nascido em 03 de novembro de 1997, é natural de Imperatriz, no Maranhão, e atualmente reside na cidade. Formado em Letras, com ênfase em Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Literaturas pela UEMASUL, é especialista em Literaturas de Língua Inglesa pela Faculdade de Educação São Luís e mestrando em Literatura no PPGLe – UEMASUL, com concentração em literatura e audiovisual. Atualmente, Kayron é professor da rede privada, lecionando disciplinas de Literatura, Inglês, Teoria Cinematográfica e Iniciação Científica. Ele também é membro do Grupo de Pesquisa Literária – GELIT e voluntário no programa de extensão “Cin(e)scola e exibição de filmes nos bairros periféricos de Imperatriz”. Além disso, é cofundador do Clube Literário Maria Firmina dos Reis, uma iniciativa que busca incentivar a leitura e a discussão de obras literárias contemporâneas entre alunos do Ensino Médio. Kayron também se dedica ao incentivo ao teatro e ao audiovisual no ambiente educacional de Imperatriz. Siga o autor no Instagram: @kayron_kaic