O dilema Pessoa-Personagem | crônica do livro Sem pé com cabeça: crônicas do século 21

 por Bert Jr__

 



E
m algum momento da vida, você terá se surpreendido (ou serei apenas eu?) ao se comportar de forma meio estranha, ou expressar uma ideia, uma opinião, que lhe soa um tanto inusitada. Ali, naquele instante, você não está sendo a pessoa que normalmente corresponde a você. Ali, naquele dado momento, eu, você, estamos operando no modo personagem.

Simmm! Por incrível que possa parecer, de vez em quando a gente vira personagem. Isso acontece, mais que tudo, em situações de convívio alargado, quando saímos da nossa zona de conforto social. Especialmente nas ocasiões em que, chamados a participar de eventos — reuniões, festas, jantares, aniversários —, somos colocados num círculo com o qual não estamos familiarizados e nos vemos na contingência de ter que interagir com pessoas das quais pouco sabemos e que, por sua vez, também pouco sabem de nós. E, às vezes, não queremos mesmo que saibam. 

Em tais circunstâncias, naturalmente surge a tentação de apresentar uma versão “editada” de nós mesmos, ou, então, uma projeção fantasiosa da nossa personalidade. Esta é a oportunidade perfeita para que o personagem apareça. 

A característica principal do personagem é que ele assume comportamentos, atitudes, opiniões, que, em maior ou menor medida, não se coadunam com a maneira de agir e pensar da pessoa. O desenvolvimento do personagem poderá ser administrado pela pessoa, ou fugir a seu controle, a depender do quão conscientes estejamos sobre quem ele é e do que é capaz. Deve-se, no entanto, ter presente que o personagem almeja ter vida própria, e irá se comportar com uma lógica que não é a da pessoa. Portanto, embora o modo personagem possa ser estratégico em determinados contextos, trazendo ganhos e benefícios, sempre haverá riscos inerentes à sua operação.

    Digamos que você não esteja acostumado a ingerir bebidas de elevado teor alcoólico. Pode acontecer que, numa roda de conversa em que a bebida geral seja uísque, por exemplo, o seu personagem venha a ser um tipo boêmio, para quem entornar um copo de 12 anos cowboy no gute-gute é moleza. De repente, você pode surgir cantando vamos a la playa, nananana-ná em meio a um debate sobre os efeitos da pandemia de covid-19 na economia global. Esse tipo de risco existe no modo personagem, entende?

Outra situação possível, próxima do que já vi acontecer. Você entende o básico de xadrez, sabe o movimento das peças, mas nunca se aprofundou. Só que o seu personagem é um jogador brilhante, acostumado a disputar partidas em torneios de clubes de xadrez. Com um currículo desses, é natural que seja desafiado a jogar uma partida ali mesmo, na festinha, com todo mundo em volta, de olho. Lá pelas tantas, o oponente vê a sua linha de defesa e comenta: então é chegado numa “siciliana”. O seu personagem, que não sabe o que vem a ser uma defesa siciliana, retruca: já peguei, mas sou chegado mesmo é numa polaquinha. Tá vendo? Além de demonstrar ignorância, ainda foi politicamente incorreto, pois deveria ter dito polonesinha. Percebe o risco?

   Existem, também, situações ambíguas, que podem pender para o bem ou para o mal. É o caso da garota sentada ao seu lado num jantar, que pergunta o que você está achando do vinho. A pessoa que é você responderia, de modo um tanto simplório, que embora não seja um entendedor, o vinho lhe parece interessante. Já o seu personagem, que é um grande apreciador e conhecedor de vinhos tintos, responde: veja bem, não quero ser indelicado, mas acho que este exemplar é de uma safra ruim, suas propriedades organolépticas estão totalmente descaracterizadas. A garota, então, retruca: curioso, o meu pai é sommelier profissional e recomendou esse vinho ao anfitrião, é um dos seus preferidos. A situação tornou-se complexa. O seu personagem, tratando de ser coerente com a sua (dele) personalidade, agrega: é mesmo?, me surpreende que o seu pai ainda consiga trabalho. Dispara de volta a garota, com o olhar em brasa: se o vinho não fosse tão bom e caro para ser desperdiçado, jogaria o conteúdo da taça na sua cara! 

Por outro lado, a garota poderia ter valorizado positivamente o atrevimento do personagem. Talvez ela tivesse uma relação conflituosa com o pai e aquele mesmo diálogo soasse extremamente sedutor para ela. Como disse, o modo personagem pode engendrar vantagens comparativas em relação à pessoa, a depender do contexto.

Outro exemplo: o conquistador exibido, que adere ao modo de operação de um personagem tímido, poderá desfrutar de oportunidades anteriormente impensáveis junto a garotas que estejam cansadas de conquistadores exibidos. 

A duração do personagem, contudo, não é vitalícia. Em algum momento, a pessoa deverá retomar o comando da situação. Daí surgem três cenários possíveis:

  1. O personagem atua numa situação específica, de curta duração, e desaparece de cena.

  2. O personagem atua numa situação que se desdobra e se estende no tempo e tentará manter-se no papel.

  3. O personagem atua numa situação que se desdobra e se estende no tempo, mas a pessoa irá retomar o controle, retirando o personagem de cena.


A sobrevida do personagem tende a ser algo problemático e, no limite, poderia levar a uma cisão da personalidade da pessoa. Portanto, a melhor opção seria a primeira. Uma atuação curta e limitada, em situações passageiras, evitando desdobramentos e prolongamentos temporais. Convém, no entanto, estar preparados para a possibilidade de que a situação em que o personagem atua venha a ter desdobramentos. Nesse caso, para facilitar a retomada do controle da situação, o que exige a eliminação do personagem, é aconselhável que os personagens não sejam drasticamente distintos da pessoa. Quanto maior for a área de intersecção entre os atributos de ambos, mais fácil será para a pessoa se desfazer do personagem e reassumir integralmente o comando.

Há casos em que se constata um certo grau de permanência de algumas características do personagem, que são “canibalizadas” pela pessoa e passam a constar do seu repertório de atitudes. Talvez seja esse um bônus ocasional do dilema pessoa-personagem.

Seja como for, convém estar cientes de que a estória vivida pelo personagem será sempre uma parte da história da pessoa, trazendo um conjunto implícito de recordações e consequências.



** Esta é a crônica que abre o livro Sem pé com cabeça: crônicas do século 21 (2023), de Bert Jr, publicado pela Editora Labrador. O livro está disponível para ser baixado no Kindle Unlimited neste link: https://a.co/d/7daGMBZ


Sinopse:

A imaginação corre solta nesta coleção de crônicas, em que se projetam temas, curiosidades e cenários da experiência contemporânea. Aqui o imponderável, o surpreendente, o inusitado escrutinam o possível com deliciosa irreverência. Aquilo que nas narrativas soa como estranho, ou mesmo maluquice, acaba por revelar-se parte de uma técnica pouco convencional de virar os assuntos ao reverso, como se faz ao desenformar um bolo ou assar uma panqueca. É a hora em que a consistência da massa é testada. Aliás, gastronomia é tema recorrente, junto a inúmeros outros: animais de estimação, obras literárias, linguagem, modismos, presentes, ovnis, história(s), etc. Quem ler este livro sentirá faltar-lhe o chão, tendo, ao mesmo tempo, a cabeça povoada de ideias, justo como sugere o título.


 




Bert Jr é gaúcho de Porto Alegre. Graduou-se em História e Diplomacia. A profissão de diplomata o tem levado a conhecer vários países. Estreou na ficção, em 2020, com Fict-essays e contos mais leves. Em 2021, publicou o seu primeiro livro solo de poesia: Eu canto o ípsilon E mais. Em 2022, lançou um segundo volume de contos, Do Incisivo ao Canino, e outro de poemas, intitulado Nevoandeiro. Em 2023, vem a público o seu terceiro livro de poesia: Vi&Verei. É colaborador assíduo da revista eletrônica Conexão Literatura. Sem pé com cabeça é o seu primeiro livro de crônicas. Antes do fim do riso (2024) é seu romance de estreia, publicado pela Editora Oito e Meio.