por Taciana Oliveira__
A divisão em partes inspiradas em livros bíblicos (Gênesis, Atos, Os Gentios e Apocalipse) não é mero acaso; cada seção ecoa fases distintas da existência humana e da interação com o meio ambiente, especialmente no contexto amazônico. Godinho utiliza essa estrutura para conduzir o leitor por uma jornada que começa na criação e termina na destruição, espelhando o ciclo de vida, morte e renascimento tanto da floresta quanto de seus habitantes.
No conto inicial, Qualquer Fogo Mata | Versões, conhecemos Luara, uma jovem indígena mestiça, que vive em uma região devastada por drásticas mudanças climáticas, alternando entre secas severas e chuvas extremas. Ela dá à luz ao Filho do Boto, fruto de uma violação cometida por seu próprio pai. Em meio a essa realidade brutal, Luara luta para sobreviver, mas eventualmente entrega seu filho à cafetina Jovelina, na esperança de lhe proporcionar um futuro melhor ou, ao menos, diferente do seu. A partir desse ponto, diversos personagens se conectam com a história de Luara e de seu filho, desnudando as injustiças, explorações e os bastidores sombrios de uma região rica em recursos, mas vítima da ambição humana. A floresta amazônica é retratada não apenas como cenário, mas como personagem vital, sofrendo e reagindo às agressões que lhe são impostas, tão vítima quanto as pessoas que nela habitam. Ela enfrenta a perda de sua identidade cultural devido à influência de missionários e exploradores, experimentando uma desconexão entre as tradições ancestrais e a imposição de valores externos, ressaltando a luta pela preservação da própria essência em meio à opressão.
Em Qualquer Indignação Mata | Dos Restos que Permanecem, a protagonista é vítima de abusos e de uma gravidez resultante de uma relação violenta. O conto explora o desespero e a falta de opções que levam a decisões extremas. Qualquer Contaminação Mata | O bolo, apresenta a relação tensa entre a protagonista e Sebastiana expondo a exploração laboral e as dinâmicas de poder em ambientes de garimpo. Temas como abandono infantil, exploração e tráfico de animais estão presentes em Qualquer Tráfico Mata | Ararinha Azul. Um menino é entregue à cafetina Jovelina e desafia a exploração e a solidão. A ararinha azul torna-se um símbolo de liberdade e esperança. A libertação da ave representa um ato de resistência e a busca por redenção em meio à degradação moral e ao tráfico ilegal. Já em Qualquer Exploração Mata | Infâmia, o protagonista é forçado a adotar um papel que vai contra sua essência, sofrendo repressão e violência. O conto explora os efeitos da opressão e da exploração humana, mostrando que essas forças destroem individualidades e sonhos.
A relação entre a narradora e Anésia, uma benzedeira doente, retrata o cuidado, a indiferença e o esgotamento emocional. Em Quando a Secura Mata | A Graviola, a fruta que antes simbolizava cura torna-se metáfora para a impotência diante da morte e o desgaste dos laços afetivos. Quando o Apocalipse Mata | Até os Confins da Terra aborda o processo natural de decomposição e contrasta com a indiferença dos garimpeiros em relação às tradições funerárias dos povos indígenas. O conto critica a exploração ambiental e o desrespeito às culturas ancestrais, evidenciando as consequências da ganância humana.
Narrado do ponto de vista de uma onça-pintada, Qualquer Fome Mata | Aos bocados escancara a escassez de recursos causada pela devastação ambiental. A onça representa a natureza em revolta, enfatizando os impactos negativos das ações humanas no ecossistema e na cadeia alimentar.
Vários contos destacam a devastação florestal causada por atividades como garimpo ilegal, grilagem e desmatamento. A natureza é personificada e apresentada como vítima e, por vezes, como agente de revolta contra as agressões humanas. A obra explora as desigualdades enfrentadas pelas comunidades locais, incluindo povos indígenas e ribeirinhos. A falta de acesso a direitos básicos, como educação e moradia, e a negligência das autoridades são temas recorrentes. As narrativas traduzem a perda das tradições e línguas indígenas devido à influência externa e à imposição de valores alheios, retratando a luta pela preservação da cultura e da identidade próprias. As personagens femininas enfrentam múltiplas formas de opressão, incluindo violência doméstica, exploração sexual e desvalorização de suas ambições. A obra destaca a resistência e a busca por autonomia dessas mulheres.
A crítica à hipocrisia presente em instituições religiosas e sociais é evidente. Personagens que deveriam ser exemplos de moralidade são ilustrados cometendo atos condenáveis, expondo a corrupção e a duplicidade de valores. A questão da terra é central em vários contos, evidenciando os conflitos entre pequenos proprietários, comunidades tradicionais e grandes exploradores. A grilagem e a expulsão de moradores são denunciadas em suas práticas injustas e violentas. Apesar das adversidades, as personagens demonstram força e resistência. Destaco ainda os contos:
Qualquer Devastação Mata | Uma Peça em Pequenos Atos onde, utilizando de uma estrutura teatral, a autora apresenta a história de uma família vítima de violência e injustiça social. A narrativa crítica a indiferença das autoridades e da sociedade e demonstra que algumas tragédias são invisíveis apesar de ocorrerem diariamente.
Qualquer Descompasso Mata | Duelo de Cordas, a personagem Jacira, agora adulta, procura uma posição de destaque na orquestra sinfônica. O conto explora a busca pela perfeição artística e a solidão inerente a essa jornada, bem como as dinâmicas de gênero em ambientes competitivos.
Qualquer Abuso Mata | Stradivarius, a história de Jacira continua, revelando as tensões em seu relacionamento com Lourenço. Após não ser escolhida para a posição almejada, ela enfrenta o machismo e a desvalorização de suas ambições, culminando em um ato de rebeldia.
Qualquer Pavulagem Mata | Do Céu, Partirão Tempestades, o conto final retorna à infância de Jacira, retratando as dificuldades enfrentadas para acessar a educação em meio às adversidades climáticas e sociais. A perda da identidade cultural e a marginalização são evidenciadas, deixando uma reflexão profunda sobre esperança e resistência.
Sandra Godinho entrega uma obra que dá voz aos silenciados da Amazônia e escancara as feridas abertas pela exploração ambiental, pela opressão social e pela ambição desmedida. A divisão em partes como Gênesis, Atos, Os Gentios e Apocalipse não apenas organiza a coletânea, mas também reforça a ideia de um ciclo—da criação à destruição—refletindo a realidade de uma região rica em recursos naturais, porém constantemente ameaçada. A floresta amazônica é mais do que um cenário; é uma entidade viva que sofre, reage e influencia os destinos humanos. Os contos evidenciam que a devastação ambiental anda de mãos dadas com as injustiças sociais, afetando profundamente a vida dos habitantes locais.
Com uma escrita poética e contundente, Sandra Godinho chama o leitor para refletir sobre temas urgentes e universais, como justiça e a relação intrínseca entre o homem e a natureza. Leitura indispensável para quem tem em vista compreender as várias camadas da realidade amazônica e os desafios enfrentados por seus povos, “O Negro Secou” é um título profundamente simbólico que sintetiza os principais temas abordados na obra. Ele evoca imagens de perda, esgotamento e destruição, tanto do meio ambiente quanto das relações humanas. Um poderoso lembrete de que a devastação ambiental e a opressão social estão intimamente ligadas, e que a perda de recursos naturais vitais, como o Rio Negro, representa também a perda de vidas, tradições e esperanças.
"O Negro Secou" é, portanto, um chamado à consciência e à ação, enfatizando a necessidade de proteger e revitalizar tanto a floresta quanto as comunidades que dela dependem. Em última análise, a obra encapsula a mensagem central de que a destruição do meio ambiente é inseparável da degradação humana, e que é imperativo agir antes que todos os recursos—materiais, culturais e espirituais—se esgotem por completo.
Título: O Negro Secou
Autora: Sandra Godinho
Editora: Litteralux
Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua na direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.