Rosmim, crônica do livro Tudo um pouco mal, de Myriam Scotti

 por  Myriam Scotti__




Crônica “Rosmim”, págs. 18 e 19, do livro “Tudo um pouco mal”, de Myriam Scotti

Volta e meia, me pego repetindo expressões e frases escutadas na infância. Algumas vêm do dialeto sefardita que minha avó empregava no dia a dia, filha de um judeu marroquino tradicional como era. Por exemplo, se me flagrasse mal vestida para determinada ocasião, vovó logo me interpelava: “ai, essa roupa está muito rosmim, minha filha. Não tem outra não?”, querendo dizer que eu estava bem mixuruca, aquém da festa. 

Boa parte do meu vocabulário vem da ancestralidade. A formulação das frases, o uso da segunda pessoa, as expressões antigas, o dialeto, as repreensões e até os preconceitos foram sendo moldados a partir da escuta das minhas ancestrais. Os preconceitos, inclusive, são uma desconstrução diária, tendo em vista que, o que pensamos ser absurdo hoje em dia, no século passado era normal e completamente aceitável. E como é bom saber da plasticidade do nosso cérebro, portanto, adaptável, de modo que, comemoro o avançar do pensamento social em relação às necessidades de mudança da língua.

Afinal de contas, tal qual a humanidade, a língua precisa evoluir para representar o momento, o agora. Lendo um jornal de 1910, deparei-me com ‘ontem’ sendo escrito hontem, entre outras curiosidades. Se disséssemos para um professor da época que essa palavra sofreria mudanças, provavelmente, ele não acreditaria e riria da nossa cara. Portanto, entendo a dificuldade da maioria das pessoas quando escuta sobre a necessidade de se ampliar a representatividade pelo uso da linguagem neutra. É difícil mesmo aceitar mudanças que rompam com o que já nos é confortável. É preciso tempo para absorver e inserir o estranho que, pasmem, um dia, quando menos esperamos, deixa de ser estranho e passa a ser natural. 

Já dizia um filósofo que a língua pode ser fascista, pois obriga a dizer algo de determinada forma já codificada. Mas ele nos apazigua quando, em seguida, explica que a literatura é capaz de dobrar a língua e fazê-la (res)surgir em outro formato, de modo que, se é penoso compreendermos a necessidade das mudanças, inclusive em relação à língua que se fala, abracemo-nos à literatura, ferramenta capaz de nos despertar para o novo de forma mais branda. Evoluir é preciso.  



Myriam Scotti
nasceu em 1981, em Manaus (AM). É escritora, crítica literária e mestre em Literatura pela PUC-SP. Seu romance "Terra Úmida" foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020. Em 2021, seu romance juvenil “Quem chamarei de lar?” (editora Pantograf) foi aprovado no PNLD literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo. Em 2023, lançou o livro de poemas “Receita para explodir bolos” (editora Patuá). Foi finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. No ano passado, ficou em segundo lugar na categoria conto do prêmio Off Flip. Recentemente, na Flip 2024, lançou o livro de crônicas “Tudo um pouco mal”, pela editora Patuá.