por Adriane Garcia___
“...sem perder a ternura”, livro do poeta Laércio J. Pereira, destaca, entre os vários sentimentos retratados em seus versos, a compaixão. Não por acaso, o poeta escolhe para epígrafe as palavras de José Saramago: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu fizeram-no de carne, e sangra todo dia”. Ao lado da compaixão, o amor ágape também aparece no livro, o amor desinteressado, contemplativo e abrangente. A empatia se mostra na preocupação com os desvalidos, com a justiça social nunca instalada no país, com o capitalismo e a desumanização que ele promove. No poema “Garimpeiros” a surpresa de descobrir o que, afinal, nas grandes cidades, os vulneráveis socialmente garimpam.
A influência da profissão do poeta, que é fotógrafo, se faz sentida: o contato privilegiado com imagens da natureza, do campo, das árvores, dos pássaros, das águas, das montanhas e do céu. A poesia de Laércio J. Pereira aponta para o relógio natural (anticapitalista). Nesse sentido, ele nos faz refletir sobre o ciclo circadiano (do latim circa diem, cerca de um dia), nosso relógio biológico acertado com o do planeta. Podemos encontrar em seus versos aprendizados advindos da observação e contemplação: “A natureza faz o que tem que ser feito, espera e recomeça. / É um calendário mais antigo do que o homo sapiens”. Uma certa nostalgia da própria profissão de fotógrafo se dá em um contraponto, que é lamento. Um fotógrafo de eventos olha para o extinto lambe-lambe que vivia no parque, fotografando a felicidade, embaixo das jaqueiras centenárias. Em “...sem perder a ternura” há um grande desejo de integralidade com a natureza, procurando-a mesmo no meio urbano: “Acompanho a volta das tulipas a floriculturas”. Laércio J. Pereira lança seu olhar atento para os outros seres e constata, por exemplo, a modificação do comportamento dos animais não humanos pelo convívio conosco, modificação quase nunca benéfica aos bichos.
O livro é marcado contextualmente pela pandemia do coronavírus, durante o governo da extrema-direita no Brasil (2018-2022), denuncia a falsidade escondida pela máscara em retratos nítidos do cidadão de bem encontrados país afora e, aqui, podemos pensar em máscara tanto como objeto quanto como metáfora. Nos versos do poema “Esse tipo de gente” fica nítido o projeto não antipobreza, mas o projeto antipobre do governo necropolítico de Jair Messias Bolsonaro. É nessa toada, que o poeta pergunta “qual monstro tu andas a esconder no teu ser?” indagando sobre o lado sombrio que habita todos os seres humanos. A religião aparece para tamponar o que há de pior no ser humano, a hipocrisia dos que se mostram “terrivelmente religiosos”. É a própria religião como máscara. A formação reativa que sempre se mostra nos excessos para tentar conter exatamente o contrário. O poeta registra o horror de viver uma política nacional trágica em um momento trágico mundialmente e afastado dos seus amores: depressão, solidão, saudade, ideação suicida. Por fim, o poeta reavalia as relações à distância e o impacto disso até mesmo na conclusão do que essas relações significavam. Para algumas a distância dos outros foi inclusive uma solução.
É interessante que em um contexto de absoluta insegurança, o poeta tenha se dedicado a um poema sobre uma mãe adorada. A mãe surge como ser sobrenatural para a criança, porque sendo suficientemente boa, a livra dos perigos e constrói com ela a possibilidade de o mundo ser seguro, apesar de tudo. Nessa segurança, o adulto poderá se guiar, como um retorno a uma crença segura. Assim também o poeta faz com sua terra, Minas Gerais, reconhecendo que esse é o seu lugar no mundo, sua Ítaca. Em alguns poemas, Laércio J. Pereira dedica-se ao tema do amor romântico, sempre inalcançável; nos versos, a passagem do tempo esfria as relações amorosas e a paixão se faz como uma experiência de quase morte. A escrita surge como espaço da sublimação dos desejos, principalmente os amorosos, pulsões desviadas de sua meta: “enfim, te beijei no papel em branco, / liso, frio, mas ávido de mim e das minhas fantasias”. À porta de novas ilusões o poeta responde com uma sabedoria duramente conquistada, envelhecer é saber reconhecer o ouro de tolo.
“... sem perder a ternura” mostra um poeta que na linguagem trabalha com ironia, bastante humor, sarcasmo, principalmente sobre situações amorosas: “O teu coração é um buraco negro/ de onde nem a luz escapa”. Também há o uso de referências de várias áreas do conhecimento como Astronomia, Física, Literatura, Mitologia, inseridas de maneira que não impedem a fluidez do texto. Laércio consegue trabalhar tanto com a dureza das denúncias quanto com a delicadeza amorosa, alcançando variada modulação entre seus poemas, além de criar muitas imagens, utilizando-se de metáforas e de metalinguagem. Em “American way of life”, sua ironia alcança grande humor quando o eu-lírico compara a felicidade ao cometa Neowise, que só passa de 6800 em 6800 anos.
“... sem perder a ternura” destaca a segunda parte da famosa frase atribuída comumente a Ernesto Che Guevara. Não é possível não endurecer diante dos caminhos de destruição que a humanidade vem escolhendo, mas é preciso encontrar as estratégias que nos fazem conservar o que temos de bom. A ternura, a compaixão, a solidariedade, a contemplação, a alteridade estendida aos outros reinos da natureza, o amor podem fazer com que sejamos resistentes a tudo que desequilibra a humanidade a ponto de ela praticar seu autoextermínio.
Pompeia
Um deus quando concede muito,
concede por tempo demais,
os mortais precisam ter cuidados.
Naqueles dias
havia colheitas fartas,
água boa,
lua cheia,
sexo fácil,
mas a montanha estava quieta.
Quieta demais como um dedo em riste a pedir silêncio,
mas a orgia continuava,
o lupanário fervia,
o deus da alegria
vigiava com um riso cínico e a sua perene taça de vinho,
regia a orquestra de gozos escandalosos.
Os urubus não vieram aproveitar as térmicas da montanha,
que os elevam aos céus.
Eles sabem
que de um deus em silêncio por tempo demais
o melhor é a distância.
Os homens poderosos vieram como sempre
para gozarem de outras térmicas,
as das casas de banho,
das carnes fáceis,
das carnes frágeis,
escravizadas.
Eram abutres menos sábios que aqueles.
Um deus em silêncio por tempo demais
já fez o julgamento.
Calendário das plantas
Acompanho a volta das tulipas às floriculturas,
a florada dos ipês e das magnólias amarelas,
o amadurecimento dos jambos,
dos pequis,
das gabirobas,
e dos muricis.
A natureza faz o que tem que ser feito, espera e recomeça.
É um calendário mais antigo do que o homo sapiens.
Há um ipê, um manacá,
uma palmeira imperial;
mais à frente uma sibipiruna e uma moita de assa-peixe.
O ipê, mesmo majestoso, não acredita que todas as coisas
precisam ser ipê.
Orientação
O sentido mais importante de uma ave é o da orientação.
Voar livre não é o mesmo que voar sem rumo.
***
... sem perder a ternura
Laércio J. Pereira
Poesia
Ed. Tradição Planalto
2022
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)