Sobre Acto da Primavera de Manoel de Oliveira

por Luís de Barreiros Tavares__



Jesus em “Acto da Primavera” 


           

 “Às vezes acusam-me de que meus os filmes são muito falados. Ora, falados são os filmes americanos, e falam sem dizer nada. Ao menos os meus filmes dizem alguma coisa porque eu escolho textos ricos, bons, profundos, mais difíceis naturalmente.” (Manoel de Oliveira)


Uma coisa é o que se representa, outra é o representar. Embora estas duas instâncias não estejam separadas, disjuntas, ambas se distinguem havendo entre elas uma relação. 

Ser natural, ou verossímil, na representação, como se entende em geral sobre o que é representar bem, nem sempre, ou melhor, não significa que seja o preferível. Aquele que representa, por outras palavras, a forma de representação mantendo um gesto e um lugar da fala e da expressão cénica em relação e em certa distância à dita naturalidade (o que é dito parecer real), ou seja, o acto de representar que trata a representação num teor teatral, supostamente artificial e, por assim dizer, não natural, ou numa suposta clivagem com o que se representa, guarda precisamente um espaço e tempo do que constitui mais propriamente a obra enquanto representação (o texto e a palavra transpostos para o teatro ou cinema. Manoel de Oliveira viu isso muito bem (p. ex., “Benilde ou a Virgem Mãe”, “Amor de Perdição” (1979), etc. E o seu olhar cinematográfico é esse: “transpor o próprio texto no filme, visto que o cinema nos dá essa possibilidade não só de gravar a imagem, mas também de poder gravar a palavra.” Quando parece estar cingido à mera leitura do texto pela sua fala, está antes a manter essa tensão, transição, “transposição” texto-filme, cinema-teatro-literatura, palavra-imagem. A imagem mantém essa dívida à palavra, fazendo pensar com o filme, que não é mero “entretenimento”, nem “distracção”, nem habilidades standard de montagem, e sem “sequências rápidas de planos”, embaladas e que embalam. “Toda a gente está habituada aos filmes americanos, os esquemas mais ou menos feitos, para aqui e para acolá. E isto foge completamente” (Oliveira sobre “Branca de Neve”, de César Monteiro). 

“A força poderosa e única do plano fixo, disse-me ele [Oliveira], tinha-me sido revelada por Dreyer, na Joana D’Arc, pelo muito amado John Ford. Sim, era aquele que dizia que só mexia a câmara quando os cavalos se moviam, para não correr o risco de distrair os espectadores do essencial.” (João Botelho)

Crucificação


“Acto da Primavera” (1963), de Oliveira, é um exemplo extremo e magnífico dessa experiência cinematográfica. Representado por não actores, que são as gentes da Curalha, aldeia transmontana, encena-se no filme a celebração popular da Paixão de Cristo, acontecimento que ocorre todas as Páscoas. Essa celebração intitula-se Auto da Paixão, datado do séc. XVI, da autoria de Francisco Vaz de Guimarães. E essa gente sente intensamente e verdadeiramente — e realmente! — toda aquela acção, aquele rito anual. Repare-se, por exemplo, na genuinidade das falas e expressões de Jesus, de Maria, de Judas, de Maria Madalena, etc. 


Maria segurando o madeiro da Cruz


E esse sentir guarda uma extraordinária intensidade dramática, apesar da ingenuidade na representação. Trata-se de uma docuficção ou filme etnográfico estabelecendo uma extraordinária ponte entre a ficção e a realidade. Notável documento de  antropologia visual, entre outros, como os de António Reis e Margarida Cordeiro: “Trás-os-Montes” (1976), “Ana” (1982). Todos eles inscrevendo-se no movimento do Novo Cinema (anos 60-70). César Monteiro vai também beber a estas fontes, com “Veredas” (1977), “Silvestre” (1981). Nesta linha, surge mais tarde Pedro Costa com a docuficção urbana. 

Nas décadas de 60 e 70 surgia também no Brasil um movimento vanguardista de características análogas, o Cinema Novo. Glauber Rocha (1939-1981), que Oliveira muito admirava, foi uma das figuras mais proeminentes: "Deus e o diabo na Terra do Sol" (1964), “Claro” (1975), entre outros.



"Eu queria mostrar que eles representavam algo que acontecera dois mil anos antes, que havia sido reescrito no século XVI e reinterpretado no século XX usando câmaras e gravadores. Eu queria filmar as câmaras enquanto estavam a filmar, os gravadores em ação. Portanto, temos o tempo de Cristo, os séculos XVI e XX. Todos ao mesmo tempo, simultaneamente visíveis. Só o cinema é capaz desse artifício. Essa magia que faz parte do cinema é o que me seduziu.” (Manoel de Oliveira)

Num outro lugar, e antes de ter lido a citação acima, escrevi esta passagem sobre “Amor de Perdição”, pensando o tempo no cinema de Oliveira:

“Assim, poderemos transitar, de algum modo, para os tempos e ambiências em que não havia cinema. «Vendo-as», vivenciando-as e experienciando-as através do cinema, com mediações picturais. O inconsciente do tempo. Esta transição do tempo no tempo. Com a extraordinária música e sonoridades de João Paes. E os trechos das Sonatas de Georg Friedrich Händel (1685–1759).”

https://revistacaliban.net/impress%C3%B5es-com-manoel-de-oliveira-16a0f31b7cca

Para se perceber melhor estas transições temporais de textos e imagens, veja-se a belíssima e instigante sequência final, onde se misturam cenas do Auto da Paixão (“eis o Homem acusado”, “eis o sem culpa culpado”…), de Hiroshima, do desembarque na Normandia, uma criança nua na desolação total da guerra, entre outras cenas de batalhas contemporâneas. Tudo isto após a imagem da mortalha Cristo. Desta irrompe subitamente o cogumelo nuclear. O final são árvores em flor na beleza da Primavera.









Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada — Amadeo — Pessoa — Santa Rita Pintor — Sá-Carneiro). Colaborador regular nas revistas “Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”, “Mirada (Br)”. Publicações nas revistas “Comunicação e Sociedade”, “Comunicação e Linguagens”, “Pessoa Plural”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon”, ”Zunái (Br)”, “Suplemento acre (Br)”, etc. Vice-director da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. De um modo cifrado, mantém-se artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.