por Luiza Conde__
Tatuí
Era um sacolejo sem fim ali na escuridão daquele ônibus, e eu sentia comichão na areia do meu pé, como se um tatuí tivesse se enterrado debaixo da pele e agora não quisesse sair, e a mulher do meu lado me sacudia. — Ei, tá me ouvindo, tá me escutando? — A voz da mulher saiu rouca de muito tempo sem falar, estávamos todos há tanto tempo sem falar, e a areia no meu pé não me deixava dormir, o tatuí parecia se enterrar cada vez mais fundo, e quando eu fiz menção de limpar, o ônibus deu um tranco e eu bati com a cabeça na parede de metal e desmaiei de fadiga e de fome e só acordei porque a mulher do meu lado me sacudiu. — Você sabe o que são jogos de crash test dummy? — Ela nem esperou que eu respondesse antes de começar a me explicar, tinha ânsia de falar, como eu tinha ânsia de catar cada grão de areia do meu pé. — São uns joguinhos em que você pega aqueles bonecos de teste de carro, aqueles que servem pra evitar as mortes horríveis da gente, e basicamente inventa mortes horríveis pra eles, e aí tem umas conquistas, do tipo carbonizar o boneco, decepar todos os membros do boneco, explodir o boneco em mil pedacinhos, enfim, uma vez eu passei horas jogando um desses joguinhos, e quando terminei de jogar percebi que eu estava molhada, assim excitada mesmo, sabe, terrivelmente úmida. — Dessa vez ela esperou minha resposta e eu fiquei em silêncio, enquanto sentia cada grão de areia do pé rangendo contra o chão, o tatuí se retorcendo na ponta do dedão, e tinha que ser justo uma louca do meu lado debaixo das janelas que não serviam pra nada no ônibus, as janelas trancadas e pintadas de preto, o ar pouco, parado, os bancos removidos pra caber mais de nós, e a gente respirando aquele ar enjoado, a gente com a bunda no chão, a gente com o cotovelo na cara, um ombro numa costela, um suor num suspiro, cada freada me custava um dente e o tatuí se enterrava mais e mais na minha carne. — E depois do dia em que eu passei horas jogando eu sonhava que cavalgava bonecos enquanto despedaçava eles inteiros, e a chuva de espuma me fazia gozar. — Senti que ela me encarava na escuridão, éramos muitos e uma pele roçava na outra e eu já não aguentava o cheiro moribundo e a areia entalada debaixo das unhas e o tatuí que ria de mim, e eu percebi que ela esperava uma resposta e quis pedir para ela não fazer de mim o seu boneco, em vez disso murmurei “hum”, eu precisava ouvir mais ainda do que ela precisava falar. — E agora sempre que eu toco uma, e às vezes até no sexo com outras pessoas, eu fecho os olhos e me imagino abrindo a costura do boneco ponto por ponto, bem devagar, devagarinho mesmo, e depois eu vou rasgando o tecido, e o barulho gostoso me faz suspirar, encharca meus dedos, e quando a espuma começa a se mostrar eu já não aguento mais de tesão, ajoelho na cama, mordo o lençol, meus dedos se afogam e eu arranco a cabeça do boneco de uma vez só, e quando ela sai inteirinha na minha mão eu gozo tão forte que grito, e eu queria que alguém soubesse. — Eu soube e ela caiu num choro contido, muitos dormiam ao redor, e apoiou a cabeça no meu ombro, eu retribuí o gesto e apoiei a minha cabeça também embora ela fosse louca, e acho que o tatuí se comoveu, parou de revirar e revolver na minha pele e sossegou um pouco, ainda que os grãos de areia espreitassem todos entre os dedos do pé. Acho que peguei no sono e ela também, ali no ônibus estávamos todos bêbados, e às vezes o trepidar quente e escuro era como a mão da mãe balançando o berço. Acho que peguei no sono e quando acordei o tatuí tinha cra- vado os seus dez pés no meu, a areia fazia coçar meu pé inteiro e a cabeça da mulher não estava mais lá, o ônibus parou e um homem de farda abriu a porta, e se ainda me sobrassem lágrimas eu tinha chorado, e eu não sabia onde estávamos, já não sabia nem de onde tinha vindo, só sei que ali tudo era cimento e ferro e fumaça, e quando o homem de farda nos mandou sair um por um do ônibus, a mulher não veio porque estava morta, eu finalmente vi a louca, a cara da louca, que era bonita, o pé da louca, sem areia e sem tatuí, o corpo morto da louca que já não podia mais despedaçar os seus bonecos, e se ainda me sobrassem lágrimas eu tinha chorado. A mulher estava morta e eu também matei o homem de farda, ele se recusou a limpar a areia do meu pé e a tirar o tatuí dali, e o sangue do homem me lavou os pés descalços, mas a areia não saiu. Outros homens me cercaram e pensei que talvez fossem me matar também. Em vez disso só me fizeram atravessar o portão.
Nascida no Rio de Janeiro em 1989, Luiza Conde é formada em Letras — Português e Russo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalhou no mercado editorial por dez anos. Mas desde cedo soube que queria escrever: “Sempre adorei ler, e já pequena veio essa vontade de contar as histórias que surgiam na minha cabeça. Escrevi meu primeiro livrinho aos 9 anos". Luiza trocou o mercado editorial pelo audiovisual aos 27 anos, área em que atua até hoje. Como roteirista, trabalhou nas séries “Sem filtro” (Netflix), “Vai que cola” (Multishow) e “Detetives do prédio azul” (Gloob), e é coautora do longa “Jogada ensaiada” (Vitrine Filmes), vencedor do Prêmio Cabíria na categoria Argumento de longa infantojuvenil em 2021. Com uma carreira profícua no roteiro, Luiza agora se lança na literatura fantástica, em "Relógios Partidos" (Editora Litteralux, 114 páginas), com 12 contos sobre o tempo e os principais medos que acometem a humanidade: envelhecer, ficar só, errar, escolher, morrer, viver.