Voltas em torno de um ponto | Renata Meffe

por Renata Meffe__


Foto de Seth Doyle na Unsplash


Do conto a ser escrito, por enquanto, só há o tema: caracol. Caminhos começam a se desenrolar na imaginação.


As espirais da concha do caracol expandem em tamanho na proporção de 1,618. Esta proporção, conhecida como razão áurea, ou de ouro, repete-se na natureza do plano micro ao macro, da semente de girassol à via láctea. Onipresente, a constante algébrica seria bom gancho para a criação de um texto. O recorte pode ser algum dos infinitos paralelos possíveis entre as razões de ouro do universo. Tratemos, por exemplo, da saga de um caracol que engole sementes de girassol. A história submersa, contida na imagem da espiral engolindo a espiral, discutiria, nas entrelinhas redondinhas, a eterna continuidade. Viagens psicodélicas à parte, o bom é que caracol rima com girassol. Mas é rima pobre. E além do mais, o que sei eu de rimas e proporções? Menos ainda de razão.


Que tal então investir na fábula da caracola Carlota, que coleciona caraminholas na cachola? Já temos título: “Olá, caracola”. Explorar o nome do animal não seria má ideia. A sonoridade de ca-ra-col revela a forma circular do nosso molusco terrestre, dono de concha espiralada calcária e pertencente à subordem Stylommatophora, a mesma das lesmas. Taí. Uma historieta para o público infantil, girando em torno de outros tantos sons, como molusco e lesma. Termos lentos. Vocábulos viscosos. Possivelmente viscosos até demais…


Agora, se estamos pensando em nos deslocar, mesmo que vagarosamente, pelo território do som — e do pegajoso — por que não assumir logo o impulso original? Posso narrar as peripécias do eu lírico de uma canção grudenta que, desde o momento em que me deparei com a temática do conto, colou suas ventosas na minha cabeça. O leitor se lembrará dela? 

Foi assim que aconteceu
Nossa história de amor
Era domingo de Sol e calor
Eu fui para o clube beber e cantar

Bem ali, deitada na grama
Tomando um Sol
Biquíni enrolado, igual caracol
Eu vi uma linda mulher bronzear

Rimando calor e amor, a música impregna minha mente — como apenas as músicas ruins são capazes de impregnar mentes — há uns bons 30 anos. Às vezes, permanece escondida por meses até apontar suas antenas para fora da concha. Basta que eu ouça alguém pedindo um enroladinho de presunto e queijo no balcão da padaria para que seja disparado o gatilho musical:


Fiquei louco, que coisa gostosa e tão feminina
Perdi a cabeça, pulei na piscina
Então me lembrei, não sabia nadar

Quase morro, bebi tanta água, mas valeu a pena
Quem fez boca a boca foi aquela pequena
Que depois de tudo quis me namorar


A historinha tem a vantagem de já me chegar quase pronta, embora seja pouco verossímil e termine com final feliz para o assediador. Perigoso demais, entretanto, desenredá-la. Vai que a pérola do nosso cancioneiro passe a empapar todos os meus pensamentos, agora continuamente? Espiral engolindo espiral. 


E outra, se é para falar de música, e de caracol, bora pensar em algo que traga questões relevantes, com um personagem chave da cultura brasileira. Pego ¨Debaixo dos caracóis dos seus cabelos¨, composição que o Roberto Carlos fez pro Caetano, quando foi visitar o amigo exilado em Londres, e puxo um fio a partir daí. Até o Rei conseguiu fazer crítica social… vou lá eu ficar de lenga-lenga com biquíni de caracol? Relato que sugira, sem entregar, algumas dessas histórias de um mundo tão distante. Talvez ambientado nos tempos atuais. Jovem refugiado climático obrigado a deixar aldeia dizimada por uma seca histórica — caracóis desidratados ao sol — atravessa o mediterrâneo. A carta da namorada — o papel é um pontinho na palma da mão do rapaz — sendo desdobrada ali mesmo no bote e expandindo-se em palavras de amor. Ela diz que sonha com o dia em que a areia branca da vila será tocada novamente pelos pés do amado. As gotas do mar misturadas às lágrimas. Só preciso ter cuidado com as proporções de melodrama ou esta narrativa, apesar da temática tão dura e necessária, termina melosa feito baba de caracol.   


Giro, giro, giro, hipnotizada pelo labirinto de ideias, e o velho conto de sempre acaba se repetindo: atravesso o túnel de possibilidades sem concretizar nenhuma delas. 


Acontece que a criação também desliza lenta e eis que a história uma hora desentoca, agora em formato de crônica, bichinho — tal qual nosso molusco— dos mais adaptáveis. No gênero espiralado, que tudo pode abarcar, vou enovelando até contos que nunca serão escritos. A própria definição de espiral serviria para descrever nossa caracólica crônica: curva plana que indefinidamente da voltas em torno de um ponto.





PS: Tomando um Sol… Biquíni enrolado, igual caracoool. Eu vi uma linda mulher bronzeaaaaar….




Renata Meffe — 
Jornalista, fotógrafa, documentarista, tradutora, professora & cronista. Sim, somente atividades altamente rentáveis. Escrevo ensaios que jamais estreiam.