por Luiz Henrique Gurgel__
Não sou turista. E essa disposição me faz andar solto por lugares onde vou.
Foi algo assim que sonhei fazer em Ouro Preto numa noite deserta. Aproveitei uma segunda de madrugada, fora de qualquer temporada turística ou de Carnaval. Essa noite teve início ainda no fim do domingo, numa hora em que a última missa da Matriz de Antônio Dias se acabara fazia tempo. Nem república de estudante ou boteco daqueles que o dono perdeu a chave se encontravam mais abertos. Meu zanzar era de quem vaga sem rumo, incerto, vagabundo. Vaga vem de vagar mesmo. Já “bundo” é um prefixo latino que significa estar “propenso a, cheio, repleto de alguma coisa”. Eu estava, embora não soubesse bem do quê.
Seguia livre no vazio, não encontrei fantasma, nem ladrão, a não ser o puro e raro prazer de caminhar sozinho por ladeiras, vielas e becos, parando quando qualquer sentido fosse estimulado a ler alguma inscrição, ver detalhe de beira de telhado, de porta, de janela, de uma vista noturna, de chafariz seco. Silêncio diferente, quebrado só pelos meus próprios passos, ou por algum gato enquizilado, um ou outro cachorro tão vagabundo quanto eu, e um único carro, táxi, que passou por mim em certa ladeira. Observava tudo como fazem os homens lentos.
Sujeito fantasioso — um perdido no século XXI — a se imaginar circulando por uma autêntica urbe do 18/19. Lembrando que Ouro Preto, no fim do XVIII era, ao que sei, a maior aglomeração urbana das Américas, maior que Cidade do México, Nova York, Cuzco. Há o peso da história arraigado ali. Isso não quer dizer que ela esteja congelada tal como fora séculos atrás. Ainda assim, a sensação é diferente da experiência de viventes em cidades que se destroem e se reconstroem de outro jeito a cada instante, nos deixando sempre 'desrreferencializados'.
Altas horas e deu vontade de ver a Igreja de São Francisco, tudo deserto. Pulei a mureta, com medo de que algum guarda-noturno perdido me tomasse por ladrão de obra sacra. Parei debaixo do adro a olhar os anjinhos do Aleijadinho com seus topetes, convictamente imóveis, surdos e mudos há séculos, indiferentes e sem paciência para papear ou assustar quem quer que fosse. Por mais que eu implorasse, sussurrando para não acordar ninguém: “Falem! Falem! Falem!”. Nem adiantava dizer que eu não era turista.
Medo mesmo comecei a sentir com o sinistro farfalhar de uma árvore grande na lateral da igreja. Não quis conferir, mas já tinham me alertado que não era bem fantasma do século XVIII que havia ali, mas tristes zumbis do XXI, ao manusear em um arremedo de cachimbo, sorvendo desesperados fumaça de uma pedrinha incandescente.
Hora de descer ladeira para o meu quartinho. Lembrei que uma mulher me disse, certa vez, que eu era lento ao caminhar nas cidades, distraído a contemplar coisas. Achei que estava mangando de mim, o flâneur ingênuo e tonto atrasando o passeio e correndo risco de ser assaltado a qualquer momento. Mas ela se corrigiu e me acarinhou dizendo que os lentos é que veem e sentem as cidades de verdade.
É bom imaginar que o céu é que nos protege, como fazem os viajantes — não turistas! — do romance de mesmo nome de Paul Bowles que virou filme lindo de Bernardo Bertolucci. Mas acho mesmo que os anjinhos de cara marota do adro da Igreja de São Francisco é que eram Anjos da Guarda. Dizem que estão sempre alerta às estrepolias de crianças e bêbados.
De viajantes também.