Costurando as entranhas | Crônica de Marcela Elisa

 por Marcela Elisa__



Foto de Dasha Yukhymyuk na Unsplash
                                                      
            Estou no Uruguai, mais precisamente em Canelones. Sento-me na canga trazida da Bahia e a música que toca é em espanhol, o que é ótimo: me devolve para a areia uruguaia em velocidade surpreendente. 

Como é difícil estar aqui. Não aqui, nesse país do mate e da cúmbia. Digo aqui, no presente. Me sinto embrenhada em fios de memórias que dilaceram minha barriga e a abre, expondo suas tripas e baço. Tento costurá-la. Pego a ponta do fio, molho com um pouco de saliva, miro no buraco da agulha (“mira, és um hornero”, diz Joca) e começo.

Cada espetada na pele traz à tona o esforço para fechar tamanha rachadura. Queria ter uma pá, um monte de terra, enterrar tudo. Queria ter cimento, pedra, tijolo e levantar um muro. Mas me faltaria o ar e o sangue.

O sangue é de quem está vivo, sabia?

Continuo a costura, de um lado para outro, apertando o suficiente, alargando o necessário. Ponto a ponto as entranhas vão ficando do lado de dentro, de onde elas nunca deveriam ter saído, ainda que quando expostas, tragam o que, há muito, o que querem dizer. E elas disseram.

“Faça suas escolhas, garota. Coloque na mesa suas necessidades. Sirva-as com acelga cozida e um pouco de azeite, assim poderão nutrir a quem ousar se debruçar ao jantar oferecido. No fim da noite, recolha cada folhinha não comida e devore-as você mesma. Suas necessidades te nutrem, garota. Olhe agora mesmo para elas.”

Ao final do remendo decido tomar um analgésico para facilitar o sono. Deito-me com dificuldade na rede armada na sala e aninho-me nas cobertas trazidas pelo meu amor. Ele me dá um beijo no rosto e diz que está comigo para o que der e vier. Não o vejo, mas o sinto. Adormeço na paz de quem está protegida pelo cavaleiro com sua espada na mão. 



Sou Marcela Elisa, professora, pesquisadora em Linguística Aplicada e escritora. Faço feitiçaria com palavras. Nasci em Bom Jesus dos Perdões, mas meu lençol freático é mineiro. Sou cronista na Mirada Janela e autora do conto “7 goles de coragem” da Editora Patuá. Atualmente, dou aulas de Língua Portuguesa e Inglesa em escolas públicas e privadas, produzo o documentário “Canto das Almas”, premiado pela Lei Paulo Gustavo — como roteirista e diretora-geral — e trabalho junto de mulheres ajudando-as a parirem a si próprias pelas narrativas que contam suas vidas.