por João Gomes da Silva_
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Foto de Dogancan Ozturan na Unsplash |
Caminhava de madrugada, frustrado por não correr o tanto que gostaria. Sem o celular, eu ouvia o impacto do tênis tocar o asfalto. Quando era adolescente corria todos os dias, de manhã e à noite, e me sentia um carro movido à água, carboidratos e muita pasta de amendoim. Hoje, embora mantenha o mesmo físico de antes, estou sedentário e dói o peito ao menor esforço em movimento intenso.
Após desistir da tentativa nostálgica, retorno caminhando, ainda mais lento que o recomendado e observando a decoração natalina do bairro do Recife Antigo. Meu lado crítico se rende ao silêncio, incapaz de desabafar com alguém, tal qual um guia turístico em decadência. Encontrasse alguém disposto a ouvir minhas críticas, seria tão desgastante quanto rever sozinho meus próprios pensamentos. Fã ou hater, não sabemos ao certo, e ficamos sobre o muro dos julgamentos descabidos.
Desacelerando me senti mais leve e pensei no tanto de benefícios de uma caminhada prolongada. O itinerário não era tão repleto de armadilhas e sendo a última sexta-feira de 2024 me impressionei por não encontrar nenhuma oferenda. Talvez não tenha encontrado por obra do acaso. Não julgo a fé alheia e tampouco urino sobre um despacho. Felizmente, não cabe a mim fazer com que dê certo. Enquanto inspeciono o chão, noto um casal se beijando fora do carro. Desejei que o beijo durasse bem mais do que uma farofa esparramada entre uvas e maças na encruzilhada.
Exausto, lentamente decido dobrar na rua de casa. Se estivesse de bicicleta, a atividade física se prolongaria ainda mais. Antes de virar na esquina, noto uma moto jogada no canto da pista, cena de um filme de faroeste. Ao dobrar, avisto um homem encostado na parede, olhos esbugalhados e um ar suspeito que contrasta com a minha aparente monotonia. Estaria esperando por alguém? Um assassino de aluguel, talvez? Mesmo curioso, decidi não olhar mais que uma vez para trás. Se ele estivesse fumando, também não atrapalharia sua lombra, e não desejava ser atingido pelas costas.
Segui e oficializei meu sumiço para casa. Em vão. Um carro vinha lentamente em minha direção, virou na rua que eu estava prestes a atravessar, deu marcha à ré e, então, me cumprimentou. Era um amigo da época que fui entregador do iFood. Tive dificuldade de recordar seu nome, em uma letra que o distinguia. Resignado de estar próximo da sua janela, me deixei levar por uma conversa que durou quase uma hora. Ele fazia Uber e aguardava uma nova viagem, eu terminava meu passeio sem imaginar que teria uma das melhoras conversas aleatórias do ano.
Conversamos sobre o que ele recordava de nós, tão atento às nossas lembranças. Dias atrás, ao ouvir novamente “Falador passa mal”, de Os Originais do Samba, lembrei-me dele, que fora quem me apresentou à música durante o tempo que passamos juntos. Gostei, a coloquei numa playlist e fiquei feliz de poder revivê-la sempre que a ouvisse novamente. Então nos encontramos assim, e não para falar mal de ninguém, mas sobre nossas novidades da vida.
Após muito bate-papo e palestra da minha parte, o carro foi inundado de solicitações de viagem. Ele quis aceitar, mas mesmo assim não foi embora imediatamente. Saiu do meio da rua para dar passagem a um carro, ficou mais silencioso e falou menos. Aproveitei para perguntar se seu contato ainda era o mesmo, mas pensei que não seria igual como conversar pessoalmente, a sorte de olhar no olho da pessoa e saber que seus ouvidos estão ali sem distrações. Despedimo-nos e, ainda atônito, agradeci. À medida que a vida segue seu ritmo, correndo mais rápido do que conseguimos acompanhar.