Estrangeira na casa que habito | Íris Cavalcante

 por Taciana Oliveira__



O universo feminino e poético de “Estrangeira na casa que habito”


A obra “Estrangeira na casa que habito” (Edição do Autor, 2024), da escritora cearense Íris Cavalcante, adentra intensamente no universo feminino, abordando questões de maternidade, identidade e opressões estruturais. Com lirismo e coragem, a autora convida o leitor a habitar o imaginário de diversas mulheres, muitas delas marcadas pelo peso do patriarcado.


Suas personagens transitam por temas como maternidade, renascimentos, loucura e morte, refletindo as desventuras de uma luta desigual e opressora. A casa, espaço feminino por essência, assume um papel central, representando tanto acolhimento quanto repressão. O título reforça essa dualidade: a mulher como estrangeira em seu próprio lar, espaço que deveria ser de pertencimento.


Com nomes que evocam gerações, como Dona Genara, Maria, Senhorinha e Clarice, as personagens carregam histórias de avós, mães, filhas e amantes, ecoando vozes de mulheres insones, esgotadas e anestesiadas pelas batalhas diárias. A obra é um manifesto poético que reivindica um espaço de justiça e liberdade, mesmo que seja na infinitude da vida após a morte.


Íris Cavalcante apresenta, com sua escrita sensível, uma polifonia de vozes que perpetua a força do feminino em uma sociedade historicamente marcada por opressões.


 Abaixo selecionamos três poemas do livro:


A casa


Era uma casa de paredes claras com retratos e afetos

cheiro de café coado e roupa lavada

lavanda de alfazema um despertador às 6

havia livros discos souvenires e quadros alguns azuis

natureza morta

havia cristais porcelanas cadernos

um diário que ninguém leu

cresceram os filhos na casa chegaram as gatas

havia sorrisos e festa e alegria

alguma tristeza e muitas memórias

havia amor ali amor que não cabe numa fotografia

mas não foi cuidado o amor e envelheceu a casa também

os habitantes seguiram com suas expectativas e planos

a casa não quis escolher com quem ficar sofria a casa

tinha uma dona e alma feminina

o reboco apareceu na parede como veias expostas

sangrando

um apego de difícil compreensão

mas a dona da casa não tinha apego

desocupou armários arrumou malas bateu a porta

e foi embora

ela amava a casa e os moradores da casa

e por amá-los quis vê-los felizes

levou o diário e as memórias da casa que é dela



Minudências


Três pés de seriguela

casa de farinha da fazenda

galinha degolada outras ciscando ninhada atrás

ingás juazeiro encantado

terreiro grande

depois nem era tão grande assim

menina era pequena demais

quisera continuar vendo as coisas grandes

tornaram-se desimportantes as coisas

o que não serve para os boçais

tem lugar no poema

seriguela no pé mãe d’água na lagoa

rês no pátio boi da cara preta

estórias das vitalinas quarto das almas

a menina achava que isso era terror

sabia do mundo era nada tadinha

nem das maldades de alguns

desenxavida mirrada um botão de gente

— me deixa vida sou ninguém não



Última oração


Levem-me tudo

mas deixem-me a poesia

que me salva da vida

nela faço minha travessia

curo-me das cicatrizes

encontro meu ritmo

danço de pés descalços

piso a terra molhada

sem o teto sobre mim

da casa onde fiz morada

levem o que já não me serve

mas deixem-me a poesia

aquela que me ressuscita

do dia em que eu morri

quando me tiraram tudo

e de joelhos eu pedi:

— senhor deixe-me a vida




Íris Cavalcante é escritora, poeta, letrista, nascida em Baturité–CE, Especialista em Escrita Literária. Estreou na literatura em 2003 com publicações independentes, participação em antologias e revistas literárias de contos, crônicas e poesias. Foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria poesia, em 2018, com o Vento do 8⁠º andar. Em 2021, publicou o romance Por quem elas se curvam, organizou a antologia Crônicas de uma Fortaleza obscena, reunindo autores e autoras do Brasil, Portugal, Alemanha e Itália, estreou no gênero crônicas com De olhos vendados, editado pelo Instituto de Estudos e Pesquisas sobre o Desenvolvimento do Estado do Ceará – Inesp.





Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua na direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.