por Adriane Garcia__
Em Minha cabeça dói, primeiro romance de Alê Motta, dois fatos sociais que se repetem até a náusea no Brasil, e no mundo em geral, chamam a atenção: o filicídio e a violência doméstica contra mulheres. Pesquisa brasileira do DataSenado, divulgada no site do Senado Federal, em novembro de 2023, aponta que 3 a cada 10 mulheres já sofreram violência doméstica. Mulheres desconfiam, frequentando grupos de mulheres — e sendo mulheres — que essa estatística está subestimada.
Narrado em primeira pessoa por Otávio, o protagonista, Minha cabeça dói nos traz um garoto que, no auge dos seus 17 anos, resolve nos contar o trauma que marcou sua vida: um acidente automobilístico em que o carro capotou enquanto o pai dirigia. Com o rosto em frangalhos, e com apenas 11 anos, o menino descobre, entre outros detalhes dessa relação (que só piora), que o pai aproveitou o momento para deixá-lo só, entre as ferragens. Essa passagem lembra o mito de Édipo, o menino abandonado, ainda bebê, pelo seu pai, Laio, no Monte Citerão, com os pés furados, origem inclusive de seu nome (pés inchados). Laio temia que Édipo o matasse quando crescesse e, convenhamos, com alguém capaz de um tratamento deste ao filho, não seria mesmo impossível que ao menos o desejo de matar o pai ressoasse. Mas voltemos dessa viagem mitológica. O Laio de Otávio se chama João e boa parte do drama do filho é matar esse pai dentro de si. Antes, o menino Otávio o idealiza, preocupa-se com ele, quer saber onde está o pai, o que aconteceu, se está vivo, se está bem. A história contada por Alê Motta coloca-nos com Otávio, no hospital, enquanto sente dores e é submetido a várias cirurgias. A cicatriz no rosto é a marca física que vai acompanhá-lo todos os dias em frente ao espelho, ao toque das mãos e aonde quer que ele vá, no olhar do outro. Ela é também o símbolo do filicídio.
Vindo de família disfuncional, na narração de Otávio percebemos que ele foi com a mãe várias vezes em diversos hospitais na cidade. Como uma adepta da Teoria do Iceberg, de Ernest Hemingway, Alê Motta faz com que as leitoras e os leitores percebam o que acontece com essa mãe sem que precise detalhar a violência doméstica. Ela nos dá apenas a ponta do iceberg, e o efeito disso é tão forte que é como se entrássemos nos hospitais com essa mulher envergonhada, querendo chorar por ela, pois já entendemos tudo e queremos proteger aquela criança que se deita em bancos duros de hospital, enquanto espera a mãe tratar machucados e hematomas novamente. Dali, da mãe, novo filicídio: os pais da mãe, os avós.
Outro tema que atravessa a história de Otávio é o racismo. Ao retratar uma família negra bem-sucedida economicamente, o racismo estrutural da sociedade brasileira se escancara. A pessoa negra precisa vigiar-se e podar-se constantemente, fazer três vezes melhor o que uma pessoa branca faz para começar a ser considerado bom o suficiente. Toda essa pressão é sentida sobre o padrasto de Otávio e suas relações com o próprio filho e a nova família.
Com sua expertise em escrever minicontos, Alê Motta é mestra em dizer muito com pouco, em sintetizar, em fazer a narrativa direta, curta, em estilo que mostra a vida com sua dureza de tragédia e beleza na resistência. Sem concessões que façam personagens se tornarem ideais inalcançáveis por essa ou aquela característica, Alê Motta escreve um romance emocionante, sucinto, memorável, que mostra a formação de um menino em uma sociedade injusta de muitas maneiras. É uma história de amores sonhados, amores vividos, amores frustrados e de resistência. Otávio ensina que é possível sair do Monte Citerão e fazer o que precisa ser feito, sem arrancar os próprios olhos, ao contrário, abrindo-os; que é com nossa cicatriz que fazemos nosso caminho, corajosamente, crescendo; tentando curar nossa criança machucada.
“Antes do acidente, eu e a minha mãe íamos a hospitais grandes e velhos, parecidos com o hospital em que fiquei internado. Minha mãe preferia variar de hospital, porque nunca sabia em qual deles encontraria médicos disponíveis, e menos fila. A gente morava num bairro-favela, numa cidade distante dos meus avós, pois meus pais fugiram quando minha mãe ficou grávida de mim. Sem o apoio de nenhum parente, sem dinheiro, sem plano de saúde, dependíamos dos hospitais públicos.
A tática da minha mãe nunca funcionava. Na maior parte das vezes, ela sumia pelos corredores dos hospitais, procurando ser atendida, enquanto eu aguardava muito tempo, com fome e sozinho, em cadeiras desconfortáveis, ao lado de pessoas estranhas. Ela voltava exausta, trazendo curativos e amostras grátis de analgésicos. Era comum precisar me sacudir pra eu despertar do sono.”
(Excerto do cap. 5 de Minha cabeça dói)
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Minha cabeça dói
Alê Motta
Romance
Editora Faria e Silva
2024
ALÊ MOTTA nasceu em São Fidélis, interior do estado do Rio de Janeiro. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia “14 novos autores brasileiros”, organizada pela escritora Adriana Lisboa. É autora de “Interrompidos” (Editora Reformatório, 2017) e “Velhos” (Editora Reformatório, 2020). É colunista da Revista Vício Velho. Alguns dos seus contos foram publicados em “Daughters of Latin America: An International Anthology of Writing by Latine Women” (HarperCollins, 2023).
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei — a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)