por Luiz Henrique Gurgel__
Queria falar de algo bom dos Estados Unidos. Deve ter sobrado alguma coisa bacana por lá desde a última eleição presidencial e dos incêndios na Califórnia.
Por um acaso e forçando a coincidência, achei um livro que há muito buscava e cuja história se passa em meados dos anos de 1930 exatamente naquela região dos incêndios. Adoro acasos, e sebos são lugares propícios, sempre há de se achar alguma coisa que estávamos loucos para ler. Foi matando o tempo depois do almoço, dia desses, que entrei em um e fui percorrer corredores apertados de prateleiras empoeiradas — remédio da rinite em dia — até que no alto de uma delas, em destaque, vi O sono eterno ou The Big Sleep, de Raymond Chandler de 1939, numa edição da Brasiliense de 1985, traduzido pelo poeta Paulo Henriques Brito. Uma história policial porreta por ruas, bairros e cidades que agora, boa parte delas, viraram cinzas.
O livro rendeu um clássico do filme Noir — “estilo cinematográfico que se caracteriza por dramas policiais com tramas complexas, iluminação dramática e personagens cínicos” — segundo a sucinta definição de uma dessas inteligências artificiais da vida.
Livro e filme são literalmente pai e filho. Só o final é um pouco diferente na película dirigida por Howard Hawks e lançada em 1946 com o mesmo título. É daquelas histórias que empolgam. No Brasil virou À beira do abismo. Humphrey Bogart é o cínico detetive particular Philip Marlowe e Lauren Bacall é a mulher fatal da trama (se não conhece a dupla, vale pesquisar na Internet).
Vi o filme num cineclube e depois numa Sessão Coruja da TV, gravando no videocassete (bons tempos!). Nunca mais revi, nem achei em canal nenhum de streaming. O livro matei em três dias, o labirinto da trama magnetiza. Pululam a cada trecho da história personagens secundários e pequenas peças que vão compondo o quebra-cabeça que o mal-humorado Marlowe vai desvendando. Por vezes, nem ao leitor ele conta o que anda pensando. E nem vale a pena ficar preocupado com o desenrolar do enredo, o importante é seguir os passos do detetive durão, cético, solitário e honesto, sem muitas expectativas na vida e que não se casou porque não gosta de mulher de policial.
Não sei se ainda tem tanta gente a ler Chandler, a gostar de cinema Noir, de Bogart ou de loiras perigosas. Será que existem aficionados do gênero como de Star Wars e de Raul Seixas? Conquistas dos novos tempos, atualmente também temos detetives pretos, mulheres negras ou orientais fatais. Só acho que os filmes policiais de hoje em dia têm tiros demais.
Mas é meio difícil — ao ler o livro, e tendo visto o filme há anos — não pensar em Humphrey Bogart naquelas páginas. O sarcasmo e certa desfaçatez de Philip Marlowe — “picareta cansado e com um futuro duvidoso”, como se autodefine no livro — casam tão bem com Bogart que me sinto como aquelas velhinhas fãs de novela que batem em ator na rua porque o confundem com o vilão que interpreta na televisão.
Para além da diversão garantida, o livro e o filme me fizeram pensar que até o padrão de qualidade dos cínicos mudou: não há comparação entre Marlowe/Bogart com Donald Trump, por exemplo. E nem falo naquele que é mais canastrão ainda, imitador grotesco do topetudo norte-americano que vive aqui em Pindorama. Sei de naturezas completamente distintas, mas sempre imagino o Trump, com suas caras e bocas, a se olhar no espelho toda manhã e dizer para si: “sou um picareta audaz e com um futuro glorioso”. Também me faz lembrar Marlowe descrevendo Joe Brody, um marginal de meia-tigela da história: “… sua voz tinha aquele tom exageradamente indiferente que os vilões têm no cinema. É por causa do cinema que eles agora falam todos assim”.
Aposto que o sonho de Trump é estrelar “The Big Nightmare”. No Brasil, iria sair como “O Grande Pesadelo”. Por causa de filmes ruins, agora todos falam assim.
Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)