Os almoços que são de lei | Crônica de Germana Accioly

 por Germana Accioly__



Acabo de chegar de um passeio no Mercado da Encruzilhada, cumprindo uma recente tradição de almoçar uma vez por semana com meu pai. Aproveito estes momentos para ouvir, compreender melhor como ele está se colocando na vida, numa fase em que a audição começa a falhar, que os sentidos lógicos iniciam caminhos menos prováveis. Comecei o “projeto almoço” levando papai a restaurantes populares do Recife e onde, certamente, ele não iria. Fomos ao Aconchego do Matuto, talvez dois meses antes do fechamento definitivo do restaurante. Depois, o Omelete do Geraldo (a melhor cabidela do Recife, garante o cardápio). Apresentei a ele, no Pátio de São Pedro, O Buraquinho, e ele quase teve uma epifania com a peixada do lugar. O que todos os lugares têm em comum, além de serem restaurantes, claro, é o atendimento olho no olho, um jeito informal de receber os clientes e, nem por isso, displicente. A gente conversa com os garçons, eles acham curiosa a nossa dupla. Tem uma simpatia gratuita em sermos pai e filha saindo juntos.


Em um desses almoços, sugeri o Mercado da Encruzilhada, porque ele morou por anos ali do lado, frequentava o lugar para consertar malas, comprar fruta e verdura, consertar alguma peça de roupa. Ele topou na hora. Desde esse dia, a tradição deixou de ser nômade: encontramos o nosso lugar. Logo de cara levei umas malas para fazer manutenção. A gente para em um dos restaurantes de dentro do mercado, na mesa de sempre. Pedimos uma cerveja, dois bolinhos de bacalhau e um prato executivo para dividir. O que muda, no caso, é a iguaria. Hoje foi uma rabada com pirão, mas já experimentamos o jabá (que amo de paixão), a cabidela (o Geraldo que me perdoe, mas a deles é incrível), costela de boi, um tanto de coisas! Papai se sente pertencente àquele lugar de um jeito interessante. Fala de coisas do passado e do presente e, também, de planos. Naquela mesa a gente sempre troca confidências, fala de política e, fundamentalmente, de um assunto que não pode faltar: a vida alheia. Ele diz isso e ri solto. Falar da vida alheia é um jargão desde que me entendo por gente. Fico puxando histórias do passado, deixo ele brilhar os olhos falando causos. Entendo esses momentos como relicários delicados de sentidos, de sintonia. 


Depois, é lei tomar um expresso no Café do Bonde. Hoje foi sem o bolo de macaxeira que Sandra, a atendente, faz divinamente. É que estamos tentando manter a linha (depois de um pirão). Ela ri da nossa decisão fitness e diz: “fica para próxima semana”.


O mercado abraça estes dias, ilumina nosso almoço. Mas estar ali também é se deparar com as desigualdades desta cidade que muitas vezes fecha as portas para tanta gente!


Hoje comentei com papai como havia pedintes, como estava impressionada com o tanto de pessoas necessitadas que circulam vendendo balas, quadros, pano de chão, penduricalhos. Ele comprou uma empada e uma Fanta para um senhor que tentava nos vender uma tela pintada a óleo, uma paisagem praieira. Quando estávamos acabando o almoço, um rapaz encostou na mesa, pediu uma ajuda. Papai sacou do bolso um trocado. Depois, outro homem, já de meia-idade, se aproximou pedindo pra gente colocar numa vasilha o que sobrara do prato executivo que dividimos. Esse último ainda tirou uma onda: “cheguei ali do lado, pedi uma comida, me deram uma pinga, aceitei, né?”


A gente ri, mas trava. A fala do rapaz desce rasgando que nem cachaça de cabeça, amargando e fazendo arder a boca do estômago.


Deixei uma bolsa lá para trocar o fecho, e a gente já tem a obrigação de voltar na próxima quinta. Aproveitaremos, certamente, para almoçar, tomar uma cerveja e comer dois bolinhos de bacalhau. Essa é a nossa liturgia, o momento do olho no olho, a possibilidade de reforçar o laço. Privilégio para mim, que hoje, aos 52 anos, ando de mãos dadas com meu pai aos 83. Outro dia até uma senhora, vendo a gente passando, falou: esse velho num tem vergonha de sair com essa moça tão jovem? Ele apertou a minha mão mais forte, sorriu, e seguimos no passo lento.



Germana Accioly
 é escritora e jornalista. Publicou “Não é sobre você” (Selo Mirada, 2021). Participou da coletânea “Crônica Popular Brasileira” (Selo Mirada, 2024).