por Germana Accioly__
Em um desses almoços, sugeri o Mercado da Encruzilhada, porque ele morou por anos ali do lado, frequentava o lugar para consertar malas, comprar fruta e verdura, consertar alguma peça de roupa. Ele topou na hora. Desde esse dia, a tradição deixou de ser nômade: encontramos o nosso lugar. Logo de cara levei umas malas para fazer manutenção. A gente para em um dos restaurantes de dentro do mercado, na mesa de sempre. Pedimos uma cerveja, dois bolinhos de bacalhau e um prato executivo para dividir. O que muda, no caso, é a iguaria. Hoje foi uma rabada com pirão, mas já experimentamos o jabá (que amo de paixão), a cabidela (o Geraldo que me perdoe, mas a deles é incrível), costela de boi, um tanto de coisas! Papai se sente pertencente àquele lugar de um jeito interessante. Fala de coisas do passado e do presente e, também, de planos. Naquela mesa a gente sempre troca confidências, fala de política e, fundamentalmente, de um assunto que não pode faltar: a vida alheia. Ele diz isso e ri solto. Falar da vida alheia é um jargão desde que me entendo por gente. Fico puxando histórias do passado, deixo ele brilhar os olhos falando causos. Entendo esses momentos como relicários delicados de sentidos, de sintonia.
Depois, é lei tomar um expresso no Café do Bonde. Hoje foi sem o bolo de macaxeira que Sandra, a atendente, faz divinamente. É que estamos tentando manter a linha (depois de um pirão). Ela ri da nossa decisão fitness e diz: “fica para próxima semana”.
O mercado abraça estes dias, ilumina nosso almoço. Mas estar ali também é se deparar com as desigualdades desta cidade que muitas vezes fecha as portas para tanta gente!
Hoje comentei com papai como havia pedintes, como estava impressionada com o tanto de pessoas necessitadas que circulam vendendo balas, quadros, pano de chão, penduricalhos. Ele comprou uma empada e uma Fanta para um senhor que tentava nos vender uma tela pintada a óleo, uma paisagem praieira. Quando estávamos acabando o almoço, um rapaz encostou na mesa, pediu uma ajuda. Papai sacou do bolso um trocado. Depois, outro homem, já de meia-idade, se aproximou pedindo pra gente colocar numa vasilha o que sobrara do prato executivo que dividimos. Esse último ainda tirou uma onda: “cheguei ali do lado, pedi uma comida, me deram uma pinga, aceitei, né?”
A gente ri, mas trava. A fala do rapaz desce rasgando que nem cachaça de cabeça, amargando e fazendo arder a boca do estômago.
Deixei uma bolsa lá para trocar o fecho, e a gente já tem a obrigação de voltar na próxima quinta. Aproveitaremos, certamente, para almoçar, tomar uma cerveja e comer dois bolinhos de bacalhau. Essa é a nossa liturgia, o momento do olho no olho, a possibilidade de reforçar o laço. Privilégio para mim, que hoje, aos 52 anos, ando de mãos dadas com meu pai aos 83. Outro dia até uma senhora, vendo a gente passando, falou: esse velho num tem vergonha de sair com essa moça tão jovem? Ele apertou a minha mão mais forte, sorriu, e seguimos no passo lento.
Germana Accioly é escritora e jornalista. Publicou “Não é sobre você” (Selo Mirada, 2021). Participou da coletânea “Crônica Popular Brasileira” (Selo Mirada, 2024).