A volta dos mortos-vivos em uma quarta-feira inocente | Crônica de Marcela Elisa

 por Marcela Elisa__



Foto de Jr Korpa na Unsplash


Saudade é um bicho matadô. Eu sei, você sabe, nós sabemos. 

Hoje mesmo, estava tranquila. Acordei cedo, levei filho para escola, fui ao dentista. Tenho pânico de dentista a ponto de ter que tomar um “seakalm” para deixar a profissional trabalhar sossegada enquanto aperto meus dedos uns contra os outros. Fiz uma reunião de trabalho, busquei filho na escola, cozinhei o almoço e ainda consegui brincar e ficar abraçadinha no sofá vermelho fazendo dengo na criança. Mas foi só pegar o computador e perceber que ainda tenho a conta do “bendito entre os homens” no Spotify e...a porta dos defuntos todos foi aberta.

UMA FOTO.

Nessa hora, os mortos-vivos saem de suas caixas guardadas em cima do guarda-roupa ou de seus bilhetes e cartas nas gavetas e fazem uma arruaça com o coração da gente, não é mesmo? Algo me diz que eles sentem nossa disposição em jogarmos sete palmos de terra em cima deles e é aí que eles reivindicam a memória mais avassaladora que pode existir, a tal da saudade.

Quer dizer, a saudade só daquilo que foi bom, é claro. Porque, gente, eu sei, você sabe, nós sabemos que não há cem por cento de nada nesse mundo. Esse quase-namoro-com-cara-de-casamento que vivi tinha muitas e muitas situações catastróficas, mas quem se importa? Quando a foto pulou nos meus olhos, eles se inundaram de água salgada feita aquelas que o “alecrim dourado” se banha nesse exato momento. E um rio de dores, toques, sexos e medos invadiram meu corpo e duraram muito mais do que aqueles poucos minutos que fiquei observando se era uma foto antiga ou nova. 

QUE TRAGÉDIA!

A criança, que jogava no celular um jogo de limpar gatinhos com um chuveirinho, quando me viu chorando, logo falou: mamãe, senta aqui comigo, me sinto confortável ao seu lado. Ele sabia que eu precisava ficar perto dele. Ele sabia. Me aninhei em seus pouco mais de vinte quilos e ficamos sentindo o calor de nossas peles como se fosse um método para curar tristeza de gente grande. Mas ele é pequeno e assim que percebeu que meu choro havia cessado foi logo pedindo uma bisnaguinha com requeijão e um leite com chocolate em pó.

A realidade nos salva, meus amigos.


Sou Marcela Elisa, professora, pesquisadora em Linguística Aplicada e escritora. Faço feitiçaria com palavras. Nasci em Bom Jesus dos Perdões, mas meu lençol freático é mineiro. Sou cronista na Mirada Janela e autora do conto “7 goles de coragem” da Editora Patuá. Atualmente, dou aulas de Língua Portuguesa e Inglesa em escolas públicas e privadas, produzo o documentário “Canto das Almas”, premiado pela Lei Paulo Gustavo — como roteirista e diretora-geral — e trabalho junto de mulheres ajudando-as a parirem a si próprias pelas narrativas que contam suas vidas.