Caetano, Santo Amaro e a sobrevida em palavras | Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__




Adoro ruínas, memória, história, palavras, música popular brasileira e Caetano Veloso. Misturei tudo um pouco numa viagem até Santo Amaro da Purificação — ou apenas Santo Amaro — no Recôncavo Baiano.

Samba de roda com prato e faca raspando no fone de ouvido desde a saída de Salvador, passei o dia batendo perna debaixo do sol, percorrendo a rua do Amparo, depois a rua do Imperador e outras tantas até achar o que queria: casa de dona Canô, rio Subaé, cais de Araújo Pinho, mercado, Largo do Bembé, convento de Nossa Senhora dos Humildes e até a casa de dona Edith do Prato, mestra do samba de roda que foi a trilha sonora da andança.

Há fantasias que só a literatura e certas músicas são capazes de provocar. São canções, romances e poemas que falam de algum lugar específico — mítico e físico ao mesmo tempo — e que se encontra no mapa sentimental de quem compôs ou escreveu. Todo mundo tem a sua Macondo, Caetano tem Santo Amaro, Drummond teve Itabira.

Claro que uma coisa é a memória afetiva de Caetano Veloso e outra coisa é a forma como a aproveita e mescla em suas criações. Ele transforma, amalgama, inventa, torce, distorce, se entrega ao próprio ato e põe tudo em canções que tocam corações e mentes, ganhando importância e se incorporando ao imaginário de gente que sequer tem ideia de onde ficaria Santo Amaro. Acaba virando uma longínqua, ansiada e idealizada “Santo Amaro da Encantação”, lugar que deve existir nalguma latitude perdida, com aquelas construções, aquela história e aquela gente.

É um pouco o que acontece quando se escuta canções como Triste Bahia (de tantas referências), Sugar Cane Fields Forever, 13 de maio e principalmente Trilhos Urbanos. Os lugares que aparecem ficam para além do tempo e do espaço, como o tamarindeirinho em que o imperador Pedro ll fez xixi, a curva do bonde que não dá para entender, o que fez pensar — sabe-se lá por quê — em Krishna e no show da Gal Costa cantando o Balancê. Verdadeiro cinema transcendental na cabeça, como já explicou o autor, e que nos comove mesmo sem ter ideia de quem foi Popó do Maculelê ou saber que o vapor de Cachoeira não navega mais no mar.

Toda memória também é, de certa maneira, recriação, já que não nos lembramos exatamente de como as coisas de fato aconteceram. Recriamos pela palavra. O que há é uma mistura entre o ocorrido, as sensações que provoca, o lugar em que se deu e suas histórias e o modo como se gostaria que tivesse sido. Uma confusão entre o real, o imaginado, o desejado e o verbo.

Mas há sempre o outro lado da fantasia quando se visita o lugar referido. A depender do viajante, o mito pode se desencantar num abandonado cais de Araújo Pinho com um rio Subaé fedido e poluído, por exemplo. Ou então com o belo e detonado palacete do Conde, outrora museu do samba de roda do Recôncavo, atualmente se decompondo junto a restos de móveis, painéis, livros e cachimbos de crack…

Melhor, então, é o que o tempo esconde lá na Santo Amaro da canção?  Não, a cidade não está em ruínas, nem tudo se perdeu. Mesmo o que está em risco é bom de ver, como a antiga e bela sede da “Philarmonica Lyra dos Artistas”. Gostar de observar ruínas a imaginar outro tempo e espaço está relacionado ao sobreviver, àquilo que se manteve vivo, de um jeito ou de outro e apesar de tudo. Testemunha vidas, é algo que escapou da destruição e teimosamente está lá para validar memórias e existências. É o que se experimenta em Pompeia, em Machu Picchu, nas Missões Jesuíticas e até na Serra da Capivara (que não tem ruínas), para dar exemplos eloquentes. Em todas elas, antigas presenças estão lá.

É o encontro com a sensação transcendental que uma canção como Trilhos Urbanos provoca, ela presentifica e salva da morte plena. Traz um ar de Santo Amaro que não se respira mais.

Por fim, apelo para uma frase de Antonio Candido que acabei de ouvir no lindo documentário de Eduardo Escorel, Antonio Candido, anotações finais: “Note bem: uma das coisas boas é reduzir a vida a palavras. Elas podem ser uma espécie de sobrevida”.


P.S. Este texto estava pronto quando veio a notícia da queda do teto de uma joia arquitetônica mundial que sofria com nosso descaso, uma das mais magníficas construções humanas que vi na vida, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, no centro histórico de Salvador. Como se não bastasse, uma jovem de 26 anos, que visitava o templo, perdeu a vida por causa do acidente. Nada que se diga sobre isso seria suficiente. O que aconteceu fala mais de nós mesmos enquanto nação que qualquer palavra. E como eu falava de Caetano Veloso na crônica, lembro que a fachada dessa igreja está na contracapa de outro disco dele, Fina estampa (1994), com canções memoráveis de toda América Latina. Caetano sempre atento ao que nos une. No encarte, inclui uma legenda sobre a igreja: “Projetada e construída pelo ‘mestre’ baiano Manuel Gabriel Ribeiro e consagrada em 1703, sua fachada é a única, no Brasil, realizada no estilo conhecido como ‘Plateresco’ (por lembrar o trabalho dos artesões de prata), típico do Barroco dos países da América Espanhola”.



Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)