por Mirada__
Whisner Fraga lança “Fomes inaugurais”, um retrato mordaz da vida nas ruas
O escritor mineiro Whisner Fraga retorna ao universo dos minicontos com “Fomes inaugurais” (Editora Sinete, 90 págs.), obra que expõe a aspereza do cotidiano de pessoas em situação de rua e escancara as hipocrisias da sociedade. O livro aposta em narrativas curtas, cenas desconcertantes e personagens que dão voz a quem vive à margem, transformando o tema em um mosaico literário que transita entre indignação e empatia.
Finalista do Prêmio Jabuti em 2023 na categoria Conto, Fraga mantém sua veia crítica e audaciosa ao abordar a desumanização dos sem-teto, trazendo histórias interligadas que compõem uma paisagem maior sobre a exclusão social. A inspiração para a obra surgiu de uma experiência pessoal, quando testemunhou moradores do seu condomínio articulando a expulsão de um casal que vivia na calçada em frente ao prédio. “Algumas mensagens de caráter profundamente desumano me deixaram revoltado”, revela o autor.
O livro perpassa temas como injustiça, julgamentos sociais, violência e sobrevivência em um ambiente hostil, mas também abre espaço para gestos de empatia e espírito colaborativo. A estrutura narrativa, baseada em minicontos que se relacionam, desafia o leitor a montar um quebra-cabeça literário, onde cada cena, embora independente, contribui para uma visão ampla e complexa da realidade retratada.
Com títulos sugestivos, os primeiros sete contos seguem um padrão curioso: todos começam com “O apetite”, como em “O apetite relutante” e “O apetite galanteador”, estabelecendo um fio condutor que amarra as narrativas. O vocabulário refinado e a concisão da escrita reforçam o amadurecimento do autor, que há 25 anos se dedica à literatura. “Este livro representa tudo o que eu quis fazer em termos literários: a concisão, a poesia, a crítica social”, afirma Fraga. “O livro me transformou profundamente, consigo ver com muito mais empatia e avaliar mais profundamente a vida em sociedade.”
Natural de Ituiutaba, Minas Gerais, e residente em São Paulo, Whisner Fraga tem uma trajetória acadêmica singular. Formado em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com mestrado e doutorado na área, também possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e um tecnólogo em Marketing Digital pela Uninter.
Sua estreia literária ocorreu em 1997 com “Seres e Sombras”. Desde então, publicou mais de uma dezena de livros, incluindo “Coreografia de danados” (2002), vencedor do Prêmio Galo Branco, e “Usufruto de demônios” (2023), finalista do Jabuti. Seus textos integram antologias de destaque, como “Geração Zero Zero: Fricções em Rede” (organizada por Nelson de Oliveira) e “Os cem menores contos brasileiros do século” (organizada por Marcelino Freire). No exterior, parte de sua obra foi traduzida para inglês, alemão e árabe pela Revista Literária Pessoa.
Além da produção literária, Fraga mantém o canal “Acontece nos livros” no YouTube, onde compartilha resenhas, dicas de leitura e entrevistas com outros escritores. Com mais de 16 mil inscritos, o espaço se tornou um importante ponto de encontro para amantes da literatura.
Confira dois minicontos do livro “Fomes inaugurais”
CONTO 1
ratos alados
polvilha farelos de pão no boné, na camiseta, nos sapatos, os pombos empoleiram, bicam os pedaços, os bichos vão se amontoando, são mais de cem, mais de duzentos, mais de trezentos, uma algazarra de voos, de competições, de penas enfeitando a pasmaceira daquele tédio em câmera lenta, ele se veste com as aves que comem e vadiam, competem, o homem abre o peito, um balé fortuito ascende no canteiro, flutuariam, nesse ritmo, não fosse o vigia da ronda abordar, com o porrete e transformar aquela alegria num amálgama de hematomas, ódio e dever cumprido.
CONTO 2
o apetite incorruptível
desmistificaremos a militância, helena: aliciamento e regalias e planilhas orçamentárias de partidos projetadas em convenções precisam de aportes, armas são caras, impulsionamentos em redes sociais são caros, subornos são caros, campanhas de conscientização são caras, licitações são caras, brindes, cartazes, faixas, helena, colchões, cobertores, botas, tickets: caros, e a origem dos depósitos que darão fôlego à luta?, não se inquiete, é por uma ótima causa, helena, eu juro, apesar da corrupção, é a lida, fundamental é a abundância: o ativismo, o partido, a entidade, os desvalidos reconhecem: um dia o município ficará abarrotado de estátuas de bronze em minha homenagem e, helena, elas não são baratas.