por Raphael Cerqueira Silva__
Errante, mas não cego, observo o menino na sala. Enjoou de assistir aos desenhos do Gloobinho. Igualmente enjoados estão os porta-retratos sempre expondo os mesmos sorrisos, os mesmos rostos, as mesmas paisagens ao fundo. Antigamente, costumava trocar as fotos todo mês. Hoje, porém, não tenho mais disposição pra abrir gavetas, escarafunchar álbuns, voltar à sala e substituí-las.
Debruçado no peitoril da janela, não sou mais que um arremedo de cronista a tergiversar sobre o nada e as veleidades das manhãs, fotos e o tempo. Tergiverso — ô verbinho feio — e a moça do 115 me olha. Não é a primeira vez. Mas, no outro dia, quando a cumprimentei, fingiu não me ver e desembestou a arredar os vasos de suculentas na varanda.
A manhã passa, arrastada. Meus conceitos escorrem pela janela. Ainda lateja a palavra que me afastou daqueles olhos castanhos.
O menino pede a senha da Netflix. Digito e vou ao banheiro.
Agora olho meu rosto esbranquiçado de Bozzano. A gilete desliza, divago sobre histórias sem-fim. Histórias que daqui a pouco aportarão no papel e, oxalá, algum dia vendam mais que meu último livro. Não sei se a leitora sabe: há tempos anoto pensamentos e historietas que, do nada, brotam na minha cachola. Até rascunhei o título de minha próxima obra: Reencontro no Motel Ventura. Soa à cafonice, eu sei, chega mesmo a resvalar no vulgar. Mas, como disse, é ainda um rascunho. E, como diz aquela música, no balanço das horas tudo pode mudar… Hein, o leitor não conhece o hit? Paciência. Tocou muito nas ondas curtas da minha infância.
O interfone toca. É a síndica. Vem avisar que fechou o hidrômetro pra limparem a caixa-d’água. Respondo “tá bom”.
A gilete volta a percorrer meu queixo. O menino reclama que a internet “tá ruim demais”. Não há nada que não esteja ruim que não possa piorar, retruco. Ele corre pra cozinha. Na certa, vai catar outro pedaço do bolo.
Ah, aqueles olhos castanhos brilhavam quando chegavam aqui em casa e viam o bolo, ainda fumegante, na mesa. Às vezes de chocolate, às vezes de amendoim. De limão nunca mais fiz: reclamou que estava solado.
Um talher cai na cozinha. Deve ser a faca. Menos mal, podia ser a jarra de suco, o menino podia se cortar, aí ia ser o ó. Raspo o bigode de dois dias recordando aqueles olhos castanhos: queriam por que queriam que o deixasse crescer pra ficar igual o carinha da novela. Nisso não cedi — odeio bigode, odeio barba — e continuei a raspá-lo.
O menino grita que o sinal voltou. O caminhão passa na rua avisando que o gás está em promoção. O interfone no apartamento abaixo toca insistentemente. Deve ser a chata da síndica.
De quando em quando dá vontade de largar tudo. De sair correndo assim como estou, sem camisa e descalço e com o rosto cheio de espuma, catar margaridas no jardim da escola, bater palmas na sua porta. Quando aqueles olhos castanhos finalmente se revelarem, sussurrar versos do Cazuza: Você me quer/Você cuida de mim/Mesmo que eu seja uma pessoa egoísta e ruim. E, se notar que titubeiam aqueles olhos castanhos, vou, sem medo de ser piegas, falar bobagens de amor, pedir perdão. Perdoado — minha falta não foi tão grave assim — afogarei as lágrimas em seu peito.
E aí que me importará se a manhã escondeu o sol, ou o sol se escondeu da manhã?
Raphael Cerqueira Silva, é mineiro São Geraldo, servidor público, graduado em Direito e História, e cronista nas revistas Vicejar e Conhece-te. Publicou Confissões, livro de contos, e A Vida Segue, livro de crônicas.