por Adriane Garcia__

No início do século XX, o neurologista austríaco Sigmund Freud criava uma nova ciência, a Psicanálise, e começava a desenhar sua topologia do aparelho psíquico. Inicialmente composta por consciente, pré-consciente e inconsciente, essa topologia mais tarde se transformou em id, eu e supereu, desembocando, à medida que os estudos avançavam, em id, ego e superego. Freud dava as bases topológicas e também econômicas; a libido, energia erótica (não necessariamente genital como muitos apressadamente entendem) investia e desinvestia em seus objetos, podendo realizar-se plenamente ou deslocar-se, desviar-se de sua meta, encontrando saídas disfarçadas. Dessa dinâmica, saídas psíquicas se fariam no sujeito, inclusive o recalque. Mais tarde, Jacques Lacan diria que essas saídas se davam em três estruturas: neurose, perversão e psicose. Como a Psicanálise — assim como qualquer ciência — se revê e tanto derruba os próprios paradigmas quanto os completa (nenhuma ciência nasce feita), demais pensadores e pesquisadores do campo psicanalítico criaram outros conceitos, assim como nomearam outras formas de subjetividades psíquicas. Disso tudo, um fato interessante é o que remonta ao início, quando Sigmund Freud aponta diversas vezes em seus escritos que onde o psicanalista vai, o escritor já estivera. Não é raro Freud usar exemplos da literatura encontrados nas obras de Shakespeare, Goethe, Dostoiévski, Heine, Arthur Schnitzler, entre outros. Há um ensaio inteiro de Freud sobre a novela Gradiva, de Wilhelm Jensen.
Tania Rivera em seu Arte e Psicanálise enuncia: “A Psicanálise e a arte do século XX nasceram na mesma época e não pararam de se atrair, se distanciar e se esbarrar, às vezes desastradamente, até hoje.” A conclusão do enunciado não deixa de ser engraçada. O fato é que se os escritores já trabalhavam conteúdos psicanalíticos em suas obras antes da Psicanálise, após a sua descoberta e desenvolvimento, a arte moderna, não só a Literatura, ficou irremediavelmente ligada às questões do inconsciente. A partir da Primeira Guerra Mundial, as referências passaram a ser explícitas, como no Surrealismo, por exemplo.
Limbo, do escritor Eduardo Sabino, é um livro composto por 34 contos, dividido em seis partes (Tipos humanos; Contos de flanagem; Tributos; Novas sociedades; Bíblicos e Mitos de origem). Os contos variam entre o realismo, o fantástico e a ficção científica, entre o texto mais estruturado como conto (tradicional) e o conto fronteiriço com a crônica. Seus personagens são bastante diversificados com algumas recorrências: o personagem jovem, a criança, o adolescente. Também os cenários mais recorrentes são as cidades de Minas Gerais, Belo Horizonte e seu entorno (Eduardo Sabino vive em Nova Lima e canta sua aldeia). As situações são surpreendentes, como a do indefectível conto de abertura, O morto. Nesse conto já é possível ter um apanhado do que virá em todo o livro: o domínio de ritmo, a exatidão quanto ao necessário, a entrelinha, o espaço que Eduardo Sabino sabe dar para o leitor completar o que lê com aquilo que o toca, um conteúdo latente. Podemos dizer que a contística de Eduardo Sabino trabalha em muitos momentos com o “gatilho” que desperta quem lê. Um desses gatilhos se dá pelo humor; o outro, pela imagem onírica.
A interpretação dos sonhos, de Freud (1900) e O chiste e sua relação com o inconsciente (1905) são dois livros fundamentais para os estudos e a história da Psicanálise. Por meio do estudo dos sonhos, da decifração do conteúdo latente por trás do conteúdo manifesto, da dissecação da linguagem do chiste (como ele obtém seu efeito de riso), além do estudo dos atos falhos, Freud vai encontrando não só o modo de funcionamento do inconsciente como as dinâmicas de adoecimento psíquico, principalmente neurótico. Jacques Lacan (que era freudiano) resumirá que o inconsciente se estrutura como linguagem. Na obra artística, no caso aqui, na obra literária, o autor está presente com seu inconsciente (afinal “o ego não é senhor em sua própria casa”), mas também com seu consciente (pode não ser o senhor, mas é o mordomo). Eduardo Sabino não só usa a imagética dos sonhos em muitos contos, a exemplo de As metamorfoses, como em muitas passagens usa o chiste. Seu domínio consciente brinca com nosso domínio consciente de leitor — admiramos sua técnica. Seu inconsciente também conversa com o nosso — e nisso, cada leitor fará sua experiência. O fato é que estamos lendo um conto sobre um velório, um enterro, um morto e, de repente, no meio da gravidade do ambiente, uma frase da criança a respeito do morto aparece: “Era o primeiro que eu via fora da tevê e achei-o decepcionante”. É essa técnica do chiste que aparecerá em muitas frases brilhantes contos afora, a síntese, a brevidade do enunciado, seu poder de acender a inquietação diante do lugar comum, da “ordem cultural”. Não se diz isso de um morto, mas rio, porque também posso pensar isso e o pensamento da criança, dito, me denuncia. Coloca-me em outra posição diante da morte e do cadáver, da gravidade de um cadáver, evoca-me um morto real e um estereótipo de morto, desfaz uma certa sacralidade.
Em Limbo a imaginação é um ponto forte; da matéria que se fazem os sonhos Eduardo Sabino compõe seus contos, ao mesmo tempo, em que, com humor e ironia, resgata memórias da infância e da adolescência. Esse humor chistoso é acompanhado de muita sagacidade. Seus personagens desfilam ora realisticamente, ora na fantasia e é possível encontrar a bruxa e o piromaníaco, os encontros e desencontros em um mundo ruidoso, seus estranhamentos. As situações mais inusitadas levam as leitoras e os leitores a uma experiência caleidoscópica. Por exemplo, em Todos os cachorros são felizes, um trabalhador destes que têm que se vestir de cachorro para divulgar uma marca na rua encontra um velho com pavor de performances, pavor justamente do inusitado. A própria morte da filha deste velho parece uma performance, algo que não se encaixa — um sonho?
Em contos bem arquitetados, alguns com estrutura de anedota — a título do conto em que um papai noel quer foder o protagonista — Eduardo Sabino vai de Minas a Órion. Em Órion destaca-se o não dito, a entrelinha; o conto é engraçado, mas é triste e necessário, revela nossa efemeridade e pequenez. Referências religiosas e literárias pululam Limbo, com naturalidade. A crítica social tanto aparece retratando preconceitos, como em A bruxa, quanto a hipocrisia religiosa, como em O evangelho segundo dow jones — escrito em capítulos e versículos — fazendo denúncia a um cristianismo que se tornou religião de adoração ao dinheiro. É interessante notar a variedade de formas e tamanho com que os contos são compostos. Em Limbo, assim como em seus livros anteriores, Eduardo Sabino mais uma vez cativa quem lê com sua escrita inteligente, sensível, perspicaz, crítica e capaz de soltar o inconsciente o suficiente para ter uma imaginação livre, enquanto conscientemente trabalha o conto para oferecê-lo com exatidão.
O morto
Chegamos ao cemitério no final da tarde, mamãe segurando meu pulso com muita força, arrastando-me por entre as sepulturas. Eu nunca tinha estado num cemitério e achei que o lugar seria idêntico ao campinho do clube não fossem as placas de metal em toda parte. Quando chegamos ao coreto onde as pessoas estavam, mamãe de repente travou, respirou fundo e depois foi abrindo caminho até o morto. Era o primeiro que eu via fora da tevê e achei-o decepcionante. Nos filmes de terror os mortos eram sempre assustadores. Aquele lembrava titio dormindo, só faltava roncar. Então mamãe disse, bem alto: Esse aí é o seu pai, meu filho. As pessoas se afastaram do caixão na hora, menos a mulher de preto, que arrumou uma gritaria danada e tentou vir para cima de mamãe. O padre entrou no meio e levou a doida para longe. Depois retornou, sozinho, e disse a mamãe: não demore, por favor. Olhei com mais atenção o morto. Seu nariz pontudo e fino parecia com o meu, e não me vi mais: nem nas sobrancelhas, nem no cabelo liso, nem na boca pequena e esbranquiçada. Você não disse que eu não tinha pai? Mamãe levou as mãos ao rosto e notei que elas tremiam. Foi a primeira vez que a vi chorar. De minha parte, não sabia como reagir. Se ela tivesse me contado antes, a escola nem precisaria me liberar no Dia dos Pais e eu nem teria chutado a árvore com os trabalhos da turma no corredor. Agora papai estava ali. Eu poderia lhe contar um segredo mas ele não escutaria, eu poderia lhe dar um abraço mas ele não me abraçaria de volta. É uma coisa inútil, um pai morto.Vai ver por isso iriam enterrá-lo.
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Limbo
Eduardo Sabino
Contos
Ed. Caos & Letras
2021
*Eduardo Sabino é autor dos livros de contos Estados Alucinatórios (Caos e Letras, 2019), Naufrágio entre Amigos (Patuá, 2016) e Ideias Noturnas sobre a Grandeza dos Dias (Novo Século, 2009). Venceu, com o conto “Sombras”, o Prêmio Brasil em Prosa 2015.
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei — a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé (Caos e Letras, 2023)