Rotina | um conto de Nely da Costa Barbosa

por Nely  da Costa Barbosa__


                                                         
Não sei o que me fez acordar cansada, minha impressão era de ter dormido à noite inteira, até recordo de ter sonhado. Estava em uma grande loja, com diversas possibilidades de compra e entretenimento, lembro que havia pessoas recitando poesias e de uma apresentação musical. Mas o relógio, que despertou conforme minha rotina, me parecia adiantado. Com os olhos pesados, sem a energia necessária para enfrentar as tarefas cotidianas, continuei na cama. Mas o medo de perder o transporte que me levava diariamente ao trabalho — e que, habituado à minha pontualidade, poderia supor um grande infortúnio — fez com que eu me levantasse apressada e entrasse no banho. Agora era correr contra o tempo. Saí sem o desjejum, as orações, fui fazendo enquanto caminhava para o local onde o ônibus me esperava. 


Cheguei a tempo, mas não consegui disfarçar a languidez, imediatamente ao meu bom dia, seu Antônio, me indagou: “Não teve noite em sua casa?” Sorri. Sem graça, sentei na poltrona número 24, peguei um espelho na bolsa e fui conferir as evidências que me denunciaram. Logo entendi aquele comentário, clichê, mas cheio de razão. A bolsa embaixo dos olhos e o semblante carregado, explicavam a ironia do motorista do ônibus. 


Teria um longo dia pela frente. Logo adormeci, só despertando com a buzina do ônibus, já na entrada da fábrica, anunciando a nossa chegada e chamando a atenção do porteiro. Desci do ônibus e segui direto para o banheiro, achei melhor lavar o rosto e retocar a maquiagem antes de começar o trabalho, tínhamos uma reunião ainda no turno da manhã e queria amenizar ao máximo, os sinais de cansaço. Passei pela copa, peguei um café e adentrei pelo corredor que me levava até a minha sala, o que demandou um sacrifício enorme. Já na sala, me acomodei na cadeira, organizei minha mesa e comecei a trabalhar nas propostas previstas na pauta da reunião, que começou cedo, por volta das 10h, terminando próximo ao intervalo para o almoço. Comi um sanduíche, mais um café, e voltei para a lida.


Depois de uma longa jornada, “mais comprida do que é um dia de fome”, como diz o matuto, me acomodei novamente no ônibus, no mesmo assento 24, e começamos a fazer o percurso que me levaria de volta. Finalmente em casa, tomei um banho, não consegui comer nada, e nem sei como cheguei até meu quarto, só sei que dormi tão profundamente que não ouvi o despertador tocando no dia seguinte. Só despertei quando não podia mais sonhar com a vida cheia de esperança, pois precisava ser real, então acordei!.




Nely da Costa Barbosanasceu em agosto de 1969 em Recife–PE, graduada em História pela Universidade Católica de Pernambuco, estudou música na Universidade Federal de Pernambuco e no Conservatório Pernambucano de música. Atualmente desenvolve pesquisa na área de cinema, mais especificamente sobre o trabalho do cineasta pernambucano Camilo Cavalcante. É apaixonada pelos livros e toda forma de arte. Começou a se aventurar na escrita ainda muito jovem, mas só agora decidiu compartilhar suas experiências com o público, acreditando estar vivendo um momento mais prolífico e mais tranquilo para se dedicar a essa arte.