por Mirada__
Obra semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 e finalista do Prêmio Minuano de Literatura explora amor, contradição e autoconhecimento
A relação entre mãe e filha é um dos vínculos mais profundos e, ao mesmo tempo, permeados por contradições. Entre amor e conflito, proteção e liberdade, Camila Anllelini traz essa complexidade para as páginas de De Amor e Outros Ódios (Editora Patuá, 137 págs.), um livro que mistura crônicas e cartas endereçadas à figura materna. A obra, que marca sua estreia na literatura, foi semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 na categoria Crônicas e finalista do Prêmio Minuano de Literatura na categoria Narrativas Curtas.
O livro reflete um desejo da autora de que seus leitores façam as pazes com suas contradições. “Cada leitor ou leitora que me procura para dizer que encontrou nas páginas desse livro algo da sua singularidade me faz acreditar um pouco mais nesse trabalho”, afirma Camila.
A dualidade da relação entre mãe e filha
A obra explora a ambivalência dos sentimentos maternos, conceito já reconhecido por Sigmund Freud, que descrevia a relação entre mãe e filha como um elo primitivo permeado por amor e ódio. Em sua narrativa, a autora traduz essa complexidade por meio de uma personagem que se vê emaranhada na figura materna — tanto no que ama quanto no que repele.
As protagonistas do livro não possuem nomes, mas suas personalidades são bem definidas. A mãe é retratada como uma sobrevivente, alguém que valoriza a vida de maneira vibrante e espontânea. A filha, por outro lado, busca ordem, controle e racionalidade, muitas vezes em oposição ao espírito livre da mãe.
Em um dos trechos mais marcantes do livro, a narradora descreve o momento em que percebe a mãe como alguém que simplesmente se entrega à alegria de estar viva:
"Silenciei imediatamente a ânsia de fazer funcionar um planeta inteiro no ritmo da minha engrenagem para poder vê-la. Dançando fora de tom, de jeito engraçado como sempre, alegre de sentir o corpo vivo.” (pág. 73)
A inversão de papéis entre mãe e filha também é um ponto-chave da obra. A filha assume uma postura de cuidado e racionalidade, enquanto a mãe traz consigo uma leveza quase infantil. Esse embate reflete não apenas as diferenças entre gerações, mas também a maneira como as responsabilidades na família moldam a identidade de cada uma.
Uma escrita que transita entre literatura e psicanálise
Natural de Pelotas, Rio Grande do Sul, mas radicada no Rio de Janeiro desde os 15 anos, Camila Anllelini sempre foi fascinada por crônicas. Cresceu admirando escritores como Martha Medeiros e Luis Fernando Veríssimo, além de clássicos como Clarice Lispector, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade.
A autora, que também é psicanalista, reflete sobre como a literatura e a análise do inconsciente caminham juntas. “Tenho como condutor a poesia”, explica. Para ela, a linguagem poética perpassa toda sua escrita, independentemente do gênero textual.
Com um mestrado em Resolução de Conflitos e Mediação pela Universidad Europea del Atlántico (Espanha) e uma pós-graduação em Psicanálise, Arte e Literatura pelo Instituto ESPE, Camila encontrou na escrita uma forma de expressar e organizar as complexidades das relações humanas. Atualmente, faz parte do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.
A construção da obra e o processo de escrita
Para Camila, a escrita é um processo que exige distanciamento. Antes de publicar De Amor e Outros Ódios, ela passou por experiências com coletivos virtuais e publicou textos de forma independente. Com o tempo, compreendeu que um texto precisa ser deixado “de lado” para amadurecer antes de ser entregue ao público.
“Quando estamos muito enroscados nele, não conseguimos entregá-lo a outros olhares. Um texto publicado passa a ser de quem o lê”, reflete.
Ela também destaca a influência de outras linguagens artísticas em seu trabalho, desde a escultura de Maria Martins até as obras de Lygia Pape, Adriana Varejão e Claudia Andujar. Além da literatura, a música, o cinema e o teatro são fontes constantes de inspiração.
O processo de escrita do livro levou quase três anos para ser concluído. Camila divide essa jornada em duas etapas: primeiro, uma escrita livre e sem compromisso com a forma; depois, um trabalho meticuloso de edição e reescrita.
“Acredito que um texto deve ser reescrito e editado quantas vezes forem necessárias até chegar na forma intencionalmente desejada”, diz.
Novos projetos a caminho
Após o sucesso de sua estreia, Camila já trabalha em dois novos projetos literários, sendo que um deles, possivelmente um romance, será o próximo a ser desenvolvido. No entanto, ainda não há previsão de publicação.
Com uma prosa carregada de poesia e psicanálise, De Amor e Outros Ódios apresenta uma narrativa intensa e reflexiva sobre os desafios, as contradições e as potências do vínculo materno.
Trecho da obra:
Mãe,
Estou há mais de uma semana tentando começar essa carta que terminei antes de saber o início. A verdade é que entre ligações curtas e apressadas, sou pega de assalto com frequência por memórias que me tomam minutos consideráveis. Entre os registros de uma cena e outra, paro nos modos que cada uma inventou para atravessar o tempo, no cheiro de bergamota queimando dentro da latinha com álcool, no inverno, que ainda sinto quando cai o frio.
Tenho me divertido com o modo como odiava os móveis da sala estofados em cores primárias. As cores, os formatos e todo aquele ar de juventude que pairava na luz chegada no fim da tarde, dando notícias que ali, pouco tempo antes, era uma casa compartilhada por estudantes. A rede atravessada no canto da janela, a samambaia no teto e a mesa alta de desenho arquitetônico exposta em meio à decoração, eu afirmava que não haveriam de entrar na minha futura vida adulta. Faltava formalidade de casa de mãe por todo canto. Em casa de estudante não tem horário certo para tomar banho, nem alguém para assegurar que os fantasmas não durmam embaixo da cama. Casa de mãe de verdade tem de ter bibelôs na estante e cortina de voil. Clássica, sem inovações, de modo a comportar o clichê da família margarina.
Minha inquietação disparava ainda mais quando, na volta da escola, a disposição do ambiente era outra. Estava escrito na minha lei que casa de mãe garante a ordem estável das coisas para além do tempo que corre lá fora. Foi ali que meu senso de rigidez começou a se avolumar. Eu sei que foi.
Olhava em tom de censura para aquelas manias subversivas de usar perfume masculino e sair por aí com o blazer maior do que a largura dos ombros. Não existia outro modelo de mãe ao meu redor que se assemelhasse a tamanha revolução. Eu queria um exemplar normal, daquele tipo que servia o almoço seguido de sobremesa e aplicava um castigo vez ou outra, à menor necessidade se fazer presente. Sonhava com o gosto de ter menos liberdade.
Fiz de tudo para ser calada, mãe, eu me esforcei jogando da boca para fora todos aqueles insultos de adolescente com lança em punho, mas não teve jeito, o direito à revolução foi garantido a mim desde que cheguei.
Perdoa atropelar com mais brutalidade do que gentileza teu jeito de criança infinita, mãe. Conseguir enxergar beleza quando a realidade se desfaz de sentido é a herança mais valiosa que carrego. É o cordão umbilical que me acompanha por aí afora. Se toda vez que me espanto com o mundo não corro de volta para casa é porque sei que aprendi contigo a sustentar o peso do corpo. É teu o meu amor atravessado para fora do osso, desculpa se às vezes espeta.
Vem fazer uma visita na terça, prometo botar menos sal no feijão. Aproveita e me ajuda a podar samambaia?
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*Camila Anllelini (@camilaanllelini) é psicanalista, associada ao Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, autora do livro De Amor e outros Ódios, Editora Patuá, semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 e finalista do Prêmio Minuano de Literatura 2024, mestre em Mediação de Conflitos, pós-graduanda em Psicanálise, Arte e Literatura. Natural de Pelotas, há quase duas décadas radicada no Rio de Janeiro.