por Duarte N. Nóbrega
Foto de Debby Hudson na Unsplash
Quando entramos numa livraria deleitados com aquele cheiro característico de papel praticamente acabado de ser impresso e entusiasmados por comprar um novo livro, às cegas, para colocar na mesa-de-cabeceira para lermos num chuvoso Domingo à tarde, ou mesmo umas páginas durante a semana antes de adormecermos, não fazemos ideia de que estamos prestes a entrar numa jornada repleta de desapontamentos. Fomos descaradamente enganados no momento em que lemos a sinopse na parte de trás do livro quando vagueávamos pela loja. Enganados por um artista que convidamos e pagámos para entrar em nossa própria casa. Um cruel artista que deixará o vilão, seja ele humano ou situação, arruinar-nos o personagem carinhoso e nada insidioso ao assassiná-lo, ou expô-lo a algum tipo de acidente fatal, ou, pior ainda, descobrirmos a meio da história que o mesmo possui uma doença terminal. O quão sádico é criar heróis magníficos e outros personagens coadjuvantes que nos identificamos para apenas nos tirar quando e como quiser a seu belo prazer…
Tentarei ser justo, por agora. Muitos dos sádicos galardoados com os mais brilhantes e opulentos prémios literários são aplaudidos e prezados por aqueles que refutam tudo isto. Defendem-nos com a desculpa que “tudo” foi em prole do romantismo. Compactuam com as ondas de homicídios dos seus escritores favoritos, porque caso não fosse assim a tragédia não seria romantizada, e, por conseguinte, tiraria toda a beleza da obra. Talvez tenham razão. Por isso mesmo é que nos sentimos hipócritas se pensarmos demasiado sobre estra ominosa característica deste tipo de escritores. Sendo assim, a sua sede por transformar tinta em sangue não cessará. Esta perversa sede é, no entanto, maior que o objetivo inicial deles, escritores, que é entregar a sua Opus Magnum ao público. Deveria assim o povo ter ido para as ruas se rebelar contra os ilustres personagens fictícios que foram mortos desde os clássicos? Deveria o povo começar agora? Afinal de contas foi por isso que se tornaram “clássicos”. Verdade, mas será mesmo?
Provavelmente é altura de ser pragmático. Devo confessor que matei um. O seu nome era Rodrigo, um homem na casa dos quarenta que lutou contra um cancro para morrer de seguida num acidente de carro. Morreu apenas para eu provar algo. Quis transmitir o quão frívolas as nossas batalhas na vida por vezes são. E olhem só o que vos custou, leitores, para eu apenas provar algo. Em supra acabei de descrever um pouco de um conto que certa vez escrevi. E quanto à menina de oito anos que foi assassinada apenas para mostrar ao seu pai o quanto ele estava a viver a sua vida de forma errática? Não havia necessidade, eu sei, mas ele tinha um problema de jogo, e uns agiotas cobraram a dívida de forma hedionda. Por que não a raptaram? Por que mataram um anjo daquela idade? Sim, a vingança do herói que sucedeu foi realmente satisfatória, mas trouxe a menina de volta? Quanto mais maldoso um vilão for maior será o herói, mas justifica tanto sangue e lágrimas derramadas ao longo da história das nossas grandes obras da literatura? Isto não acontece só na literatura, mas também nos filmes. Todavia a indústria cinematográfica é pouco diferente, porque Hollywood tem muitas vezes a decência de dar ao filme um final feliz ao guião escrito por mais um sedento argumentista com um complexo de deus. Eles têm um filtro próprio, os autores não.
Ridículo! Pensam certos leitores a cerca do que foi aqui dissecado, no entanto toda a “boa” literatura é ridícula, não na verdadeira etimologia da palavra. Não é por acaso que Nietzsche aconselhou-nos a não ler livros pela manhã, para não corrermos o risco de viver outras vidas ao invés da nossa. Por isso, também é ridículo fazermos luto por entes queridos fictícios que nos acompanharam em dias chuvosos e nostálgicos assim que sentíamos o cheiro do nosso livro de cabeceira a certo aberto.
Não obstante a tudo isto, espero que a literatura continue a ser sádica para que assim a liberdade não nos seja restrita na última coisa que ainda é livre, a construção de frases até atingir um enredo de emoções e tecer uma teia de lágrimas, de felicidade e eventualmente de introspeção. Concluindo, toda esta explicação foi em vão, assim como muitas obras que lemos e esvaneceram-se assim que novos janeiros se criaram.
Duarte N. Nóbrega nasceu na Madeira, Portugal em 1996. É licenciado em Línguas e Relações Empresariais pela Universidade da Madeira. É argumentista, romancista e poeta. Vendeu o seu primeiro argumento a um produtor independente de Los Angeles em 2020. Duarte também já foi publicado nas revistas literárias norte-americanas Twenty-Two Twenty-Eight, diversas vezes em Teach Write by Katie Winkler e na Birmingham Arts Journal.