A língua individual: um ensaio sobre variação e idioleto | Ariel Montes Lima

por Ariel Montes Lima__



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A LÍNGUA INDIVIDUAL: UM ENSAIO SOBRE VARIAÇÃO E IDIOLETO

Ariel Montes Lima

Resumo: o presente ensaio aborda a relação entre o indivíduo e a língua, explorando a variação linguística em um idioleto específico. A pesquisa se concentra na arbitrariedade do signo linguístico, conforme proposto por Saussure, e na influência afetiva do falante sobre as palavras utilizadas. O estudo baseia-se em um caso concreto, analisando as derivações fonológicas de um apelido pessoal, evidenciando a capacidade do falante de manipular a língua de maneira afetiva e criativa. O ensaio revela que a relação entre significado e significante é arbitrária e destaca a influência da subjetividade na evolução linguística.

Palavras-chave: variação linguística, idioleto, arbitrariedade do signo, afetividade, Saussure.

  1. Introdução

A dupla articulação da estrutura linguística em seu uso é um dos elementos mais interessantes a seu respeito. “Essa, por sua vez, divide-se entre a relação pessoal do falante com o sistema que usa e o manejo social que se faz com tal aparato” (LIMA, 2023, p. 105). Dessa forma, é possível estabelecermos — como geralmente se faz — uma perspectiva de análise baseada no emprego coletivo da língua; seja ele em termos sociolinguísticos (partindo do uso coletivo) ou discursivos (partindo da recepção do discurso, algo necessariamente estabelecido em coletividade).

Não obstante, é possível percebermos que estudos que versem sobre a relação indivíduo-idioma ainda são escassos. Por essa razão, me interessa realizar alguns apontamentos rumo a uma análise inicial sobre o emprego da língua partindo de seu uso restrito a um falante. Esse ensaio, destarte, é sabidamente limitado ao caso concreto aqui apresentado. Não obstante, o estudo de um caso pode ser de grande serventia ao processo maior. Como aponta Chomsky (2002), pode-se compreender para onde a tendência geral irá convergir, dado que há um framework de regras então dispostas a priori responsáveis por direcionar o curso das mudanças. O individual e o coletivo, portanto, não estão dissociados.

Nesse sentido, apresento, no presente texto, algumas considerações sobre a variação linguística dentro de um idioleto observado em um caso concreto. Como objetivo, pretendo analisar a proposta saussuriana de arbitrariedade do signo linguístico. Para tanto, emprego uma abordagem teórica calcada no caso concreto.

O caso que trago está intimamente relacionado com o gênero ensaio aqui trabalhado, uma vez que os dados coletados foram adquiridos pela minha própria experiência empírica junto ao meu irmão caçula. Assim, saliento ter total consciência do recorte teórico então estabelecido e da liberdade que o gênero adotado faculta à pessoa pesquisadora.

  1. Desenvolvimento

O primeiro pressuposto a ser considerado nessa análise diz respeito à arbitrariedade do signo linguístico. De acordo com Saussure (1995) -a quem se atribui a formulação desse conceito — a relação estabelecida entre conceito e imagem acústica não possui relação natural com o mundo enquanto uma realidade concreta.

Para Saussure, Independente da ordem das coisas, o signo pode ser compreendido na relação que mantêm com outros signos. Sua definição, é inseparável da definição de língua como sistema de signos. E a teoria do valor desenvolvida por Saussure torna possível explicar esse modo particular de existência dos signos. A língua é um sistema de valores e neste sistema os signos são tomados como parâmetros diferenciais definidos negativamente por suas relações com outros termos do sistema. Enquanto unidades do sistema, os signos têm sua significação submetida às relações imanentes do sistema, e não à relação com o mundo dos objetos. [...] Nesta perspectiva, o signo não é mais unicamente uma relação entre conceito e imagem acústica. Ele tem também um valor que não se limita à sua significação restrita. E não é mais a união entre um conceito e uma imagem acústica no sentido em que seria isolável do sistema do qual faz parte. Somente o sistema da linguagem pode fornecer especificidade ao signo pela oposição aos outros signos (CATANDUBA, 2009, p. 1088).

O outro conceito basilar para as presentes considerações é o de idioleto. De acordo com Bagno (2007, p. 47), o idioleto é um tipo de variação caracterizada pelo uso individual que o falante faz da língua. Isso inclui seu repertório lexical, sua pronúncia, sua sintaxe particular etc. Em outras palavras: o modo de expressão de cada indivíduo.

Tento estabelecidos os referenciais em questão, retomo que o interesse por escrever esse texto surgiu a partir do contato com meu irmão 08 anos mais novo do que eu. Sendo uma pessoa gênero-fluído, R.F. sempre preferiu me chamar no masculino, tendo usado na maioria das vezes um apelido para se referir a mim.

A priori, ele se referia a mim como “irmão”. Em seguida, por uma brincadeira surgida no início da minha adolescência, ele começou a me chamar de “limão” (azedinho). Curiosamente, em seguida, “limão” passou a concorrer com “lemon”. Em seguida, “limão” se tornou “limãozinho” e “lemon”, “leminho”. Finalmente, as formas se concentraram sob o apelido de lemingue”, cuja desinência — e parece caracterizar um apagamento do gênero na fala. Atribuo isso à naturalização da minha própria identidade não-binária.

Dentro do escopo levantado, apresento abaixo o encadeamento das derivações ocorridas:

Irmão 01

Limão ~ Lemon 02

Limãozinho ~ Leminho 03 Lemingue 04


Em termos analíticos, podemos perceber a seguinte segmentação:

[ir].[mã].[] 01

[l[i[ø]]].[mã].[] ~ [l[e]].[m[õ] 02 [l[i[ø]]].[mã].[].[[z][i͂]].[ɳw]~[l[e]].[m[i͂]].[ɳw] 03

[l[e]].[mi͂].[gɪ] 04


Na primeira sílaba fonológica, houve a inserção (epêntese) da consoante [l] e a queda do [r] em todas as derivações. Ao mesmo tempo, percebe-se a tendência à oclusão dos lábios revelada pela queda do [a] nasalizado e sua substituição por [õ] e [i͂]. O emprego da nasal [ɳ] também cedeu lugar para a velar [g].

O emprego do inglês na concorrência limão-lemon evidencia uma consciência linguística particular, o que demonstra o conhecimento da correspondência lexical em termos sistêmico-funcionais. No entanto, a aplicação do diminutivo -inho na estrutura inglesa também destaca a relação de afetividade estabelecida com a L1. Afinal little lemon não parece corresponder, em termos sensíveis, ao que “limãozinho” representa. Daí poderia provir a mescla de idiomas presente em leminho. O processo também destaca um conhecimento natural da estrutura linguística adquirida e, por isso, capacidade de replicar suas partes em novas fórmulas, algo já defendido por Chomsky (2002).

O movimento derivativo expressa ainda uma relação pessoal e afetiva na díade falante-língua. Isso porque a sonoridade e a situacionalidade dispostas na pronúncia da lateral [l] inserida na coda silábica e na velarização da nasal, alterada para [g] aponta para uma percepção de que determinados conjuntos sonoros seriam “mais afetivos” do que outros.

A sonoridade semelhante pode, também, haver facilitado a derivação sem, com isso, responder aos critérios linguísticos propriamente ditos. Isto é, a relação referencial estabelecida pelas palavras das linhas 02, 03 e 04 não correspondiam aos seus sentidos originais.

Dessa forma, podemos pensar que a mudança pode ocorrer a partir de fenômenos externos à estrutura linguística. Nesse caso, o deslocamento do sentido evidencia a articulação arbitrária entre sentido e imagem acústica.

  1. Conclusão

O presente ensaio buscou discutir a relação entre significado e significante em um caso de derivação. A mudança estudada evidenciou a arbitrariedade do signo e a relação afetiva do falante com as palavras que usa. Além disso, ainda colaborou para a percepção de que o uso das palavras se relaciona com a percepção afetiva que o indivíduo lhes confere.

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. São Paulo:Loyola, 52ª edição, 2009.

CATANDUBA, Edilma de Lucena. A Arbitrariedade do Signo. 2009. Anais da ABRALIN. Disponível em: Microsoft Word - Edilma de Lucena Catanduba-ok (leffa.pro.br). acesso: 07 jan. 2024.

CHOMSKY, Noam. Cartesian linguistics: a chapter in the history of rationalist thought. Edited by James McGilvray. 2 th ed. New Zealand: Cybereditions, 2002.

LIMA, Ariel Montes. Mais além da relatividade linguística: a representação como (re) imaginação da realidade. Revista Philologus, v. 29, n. 87, p. 100-9, 2023.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. Trad. bras. Antônio Chelini et al. 20 ed. São Paulo: Cultrix, 1995.



Ariel Montes Lima
é pessoa non-binary, psicanalista e professora. Autora dos livros Poemas de Ariel (TAUP, 2022), Sínteses: Entre o Poético e o Filosófico (Worges Ed., 2022), Ensaios Sobre o Relativismo Linguístico (Arche, 2022), Poemas da Arcádia (Caravana, 2023)  e O Inominado (TAUP, 2024).