Carta que restou de um amor depois do Carnaval | Crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__


                                                                   
Adoro encontrar cartas, fotos, mensagens de amor, santinhos de defunto, passagens e até notas fiscais no meio de livros que compro em sebos. Fico discretamente percorrendo as estantes, folheando volumes e garimpando preciosidades e cacos de histórias.

Anos atrás, meio acabrunhado, na véspera de um carnaval que passou, resolvi entrar num sebo e encontrar alguma coisa para ler enclausurado nos dias da folia. Assim achei a carta que transcrevo abaixo. Não lembro mais em que livro estava, acho que peguei numa coletânea de poemas eróticos. Tirei do volume e a guardei no livro que ia levar. Em casa é que pude ler sem pressa, com a deliciosa sensação de bisbilhotar pelo buraco de uma fechadura perdida no tempo. Restou guardada num envelope, na estante, para ver o que fazer com ela algum dia.

Nesse carnaval, lembrei da carta. Está escrita na segunda pessoa e o papel fino traz vestígios de perfume. Não está assinada, nem datada, também não tem o nome da destinatária. A caligrafia é bonita, segura, escrita rápida de letras grandes, caneta num tom de azul clarinho. Tem um ou outro trecho melodramático, como convém. Pode ser carta não entregue, talvez um rascunho, mas não há rasura.

O autor tem certa frieza, um lamento orgulhoso, sem derramamento. Parece amor que não resistiu a um carnaval. A festa é citada e talvez só depois dela o Pierrot apaixonado tenha percebido que a Colombina já seguia há tempos de mãos dadas com outro Arlequim. Difícil saber, só dá para fantasiar. Na carta, ele parece conformado. 

Pensei em fotografar e colar aqui para ilustrar o texto, mas fiquei com receio de o dono encontrá-la na internet e, de repente, exigir a devolução ou direito autoral. Carta achada não é roubada. 

E o mais sensacional para mim: o missivista, tenho quase certeza, era leitor de Drummond. Gato preto conhece outro gato preto.

Deixo essa pérola encontrada num sebo para a imaginação de leitoras e leitores. Pensando bem, hoje em dia ninguém mais escreve cartas de amor, muito menos as de rompimento pós-carnaval, que não deixam de ser de amor também. Teme-se o ridículo. Hoje manda-se um zap ou nem isso, dá-se simplesmente um ghosting. Já disse o poeta que ainda que toda carta de amor seja ridícula e, se há amor, tem de ser ridícula, só criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas.

Ei-la:

Tiro da parede os poemas que me deu, tiro teus livros da cabeceira, tua fotografia da cômoda. Nestas horas, lança-se mão das defesas emocionais possíveis para não sucumbir. Claro que não faz bem livrar-me da tua presença, porém…

Não há ódio, nem rancor. Pelo contrário, há mais amor ou coisa que o valha — e não falo de amor às avessas — a provocar esse turbilhão silencioso por fora e conturbado por dentro. Quase sempre se sobrevive a ele depois do carnaval. Talvez seja só a crista do desejo que se quebra provocando aflição parecida com a de um dente partido, esmalte exposto e sensível ao menor hálito. Pensa numa aflição dessas, mas em escala estelar. Não adianta, o existido continua a doer indefinidamente.

Demora-se a sentir a metade arrancada, mesmo quando se desprende aos poucos. O amputado pode ficar meses ou até anos com a presença do pedaço de si que não faz mais parte dele. É dor fantasma. Leva tempo para acostumar. Alguns sentem a textura, o volume, a maciez, o perfume… Há quem diga que quando finalmente ela passa, vez ou outra aparece uma saudade, como uma imagem longínqua, lembrança de coisas agradáveis. Em casos graves, é preciso lesar de propósito as fibras mais sutis da alma que insistem pressentir aquela presença, sob risco de não cicatrizar e virar chaga.

Mas não te preocupes, não há morbidez aqui. Não se trata do desiludido que toma todas as providências para o remorso da amada. Apenas é curativo dar sumiço às coisas que presentificam o pedaço de mim.

É e não é pessoal, pois se trata de alguém especificamente e, ao mesmo tempo, não é simplesmente por causa desse alguém que se age assim. É mais por si mesmo.

O perigo é sentir por tempos, meses ou até anos, essa dor fantasma dos amputados, estranha e prodigiosa. Mais estranho é deixar o vivido ao léu, quebrado e jogado num terreno baldio da memória, que também é parte essencial do corpo físico, como um braço, uma perna, um rim, um pâncreas, um coração.

Tem de haver respeito aos corpos. Terapeutas precisam tratar da nossa memória com o mesmo respeito que estudantes de anatomia tratariam cadáveres. Ao menos assim deveria ser.

Por ironia, apesar de tirar das minhas vistas tudo o que remetia a ti, acordei hoje, lavei o rosto e de olhos fechados fui me enxugar. Tal como na canção, quando abri os olhos, vi que era a toalha que esquecestes aqui, nela estava escrito: “Bom dia!”.

Mais alimento para a dor fantasma. Vou ter mesmo que lesar as fibras da alma.

Com todo meu carinho ruminado numa quarta-feira de cinzas.

Do seu,




Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)