Para desobedientes seres que passeiam | Crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__


                                                         
Bons caminhantes andam sempre soltos e sossegados, sentidos despertos e dispersos, mas não distraídos. É um ser lento, observador, atraído por sons, cores, pessoas, paisagens, gestos, pela arquitetura e outros detalhes que chamam sua atenção repentinamente. Sou desse tipo, a ponto de muitas vezes irritar quem anda comigo, com mais pressa. Já vou avisando: posso provocar atrasos. A lentidão tem sido banida da nossa vida e aí resta a sujeitos como eu, acompanhar apenas a si mesmo. 

Andar à toa, com olhos e ouvidos abertos, é estar sempre em busca de pequenos prazeres cotidianos, lampejos de situações que jamais retornarão. Bem diferente dos tensos olhos de quem passa com desespero as telas e imagens do celular. É que no fundo não gosto de pensar que perdi para sempre a oportunidade de ver — e sentir — algo que me apareceu apenas naquele instante, no aqui e agora da caminhada, sensação única. Por isso prefiro o andar natural e suave, atento a captar seja lá o que desperte a atenção dos sentidos. O famoso poema de Manoel de Barros, O apanhador de desperdícios, sempre fez sentido para mim.

E foi pelo acaso típico que só caminhantes tranquilos experimentam, é que descobri O homem que passeia, mangá de Jiro Taniguchi, autor japonês que jamais ouvira falar. Não creio ter lido mais que dois ou três mangás na vida, nem entendo muito do assunto. Minha infância foi recheada por Turma da Mônica, Tin Tin, Asterix, Pato Donald. Não suportava a pressa de Mickey. 

Descia por um calçadão movimentado de comércio intenso, voltava do almoço e graças à minha atenta lentidão descobri o livro numa banca de jornal, dessas de vidro, com revistas expostas na vitrine. Eu, o homem que vagava, bati o olho no livro com título e desenho atraentes, um sujeito e seu cão numa colina e ao fundo os telhados de uma pequena cidade japonesa. Ele olhava para mim. 

São 22 histórias breves, às vezes interligadas, além de uma entrevista com o autor, que morreu em 2017. Na introdução escrita pelo antropólogo Hermano Vianna, sabemos que os mangás de Taniguchi fogem um pouco do padrão, não há lutas, monstros ou situações semi-eróticas para meninas, como é comum ao gênero. E o principal: a história não corre, não há propriamente um enredo, trama, nem efeitos extraordinários. O extraordinário está na surpresa que o comum — e o ordinário — escondem. São momentos, situações episódicas do fluir ao léu de quem passeia. Parecido com o que cronistas tentam captar. Quase não há falas ou diálogos, há quadrinhos com cenas do que o personagem observa, um pássaro, pessoas, olhares, um céu, o detalhe de uma construção, uma planta. Histórias sem pressa, de quem é despertado pelas coisas mínimas e por seres desimportantes. Histórias em que há busca pela “poesia na banalidade do cotidiano”, postura típica de um “lírico de passagem” (na linda definição do professor Davi Arrigucci Jr). Mais ou menos como o personagem do ator Kōji Yakusho no maravilhoso filme do alemão Wim Wenders, Dias perfeitos (2023), ou do poeta-motorista de ônibus vivido por Adam Driver em Patterson (2016), filme do norte-americano Jim Jarmusch, que também homenageia outro poeta, o pediatra William Carlos Willians, mestre na criação de poemas que são verdadeiros “instantâneos fotográficos de uma nitidez quase sobrenatural”, disse José Paulo Paes. Ainda mais por tudo isso, é difícil não lembrar e citar mais uma vez Manoel de Barros, as histórias de O homem que passeia são um autêntico tratado geral das grandezas do ínfimo. 

Tanigushi dizia que passear não tem um objetivo e nem limite de tempo, é preciso apenas estar “disponível”, e aí o acaso sempre traz surpresas. Diz mais: “os acontecimentos pequenos é que nos enriquecem”. 

O homem que passeia contamina um vadio cronista na sua lentidão poética por qualquer caminho e que se prende a detalhes, alheio ao caos. A lentidão encanta e contraria o mundo contemporâneo, é um ato de desobediência. O caminhar é uma excitação de outra ordem, não é a do choque, mas é a dos sentidos suavemente abertos, todos juntos. A vida fica mais interessante quando percebida aos bocados, ao invés de vir afoita e opressiva goela abaixo. O desobediente homem que passeia gosta é de saborear.




Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos "amores malfadados" (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias" (Caravana Editorial, 2023)