Enigma de Kaspar Hauser - Uma Análise Sócio-Filosófica

por Jonnathan Kauã__



O Enigma de Kaspar Hauser (1974) |




Para Divania Cássia Costa da Silva



O Enigma de Kaspar Hauser, passa-se na Alemanha do século XIX, em Hansbach e Nuremberg, desde o seu processo de advento na civilização, até o falecimento do protagonista, o qual é um jovem que, após o nascimento, ficou preso a um calabouço onde apenas comia, bebia e adormecia, ignorando o mundo exterior e não possuindo a noção dos elementos ao seu redor; era tido como um homem animal, todavia sem nenhuma autonomia ocasionada por necessidades instintivas.  

  A narrativa cinematográfica propõe trazer aos espectadores questões fundamentais do desenvolvimento humano e da ideologia que molda uma determinada sociedade e rege as condutas humanas e seus pensamentos, através do consenso e coesão, sem o uso da força física, que escondem as distorções, desigualdades sociais e exploração. 

Com o labor dos remos pelas águas a mover um barco, com a vista dos camponeses, do castelo e da flora, somos introduzidos ao prelúdio da produção audiovisual, sob o canto da letra de Emanuel Schikaneder, a sua ária Dies bildnis ist bezaubernd schön, Esta imagem é encantadoramente adorável, traduzindo o título, que compõe a ópera A Flauta Mágica de Wolfgang Amadeus Mozart (1791). O fragmento da peça que compõe essa canção, mostra a paixão do príncipe Tamino ao contemplar a imagem da princesa Pamina:  


Esta imagem é encantadoramente adorável,

Como nenhum olho jamais viu!

Eu sinto isso como esta imagem divina,

Enche meu coração com uma nova emoção.

(MOZART, 1791, n.p)

 

Expressão puramente lírica e romântica que, convertendo tal estrofe ao contexto aplicado à produção cinematográfica, podemos assimilá-la conforme as sucessões do fatos trabalhados no filme, mesmo que tal trilha sonora tenha sido uma escolha que remeta ao período histórico baseado no qual é desenvolvido o filme, bem como à própria cultura vigente, especificamente a musical denominada como “Período Clássico”, estabelecida pela classe dominante que qualificava e definia as expressões humanas em critérios restritos.  

Aludindo-a à vivência de Kaspar, o protagonista, há uma contraposição entre as reações e sensações do eu-lírico e o jovem. Enquanto um, ao visualizar o “novo” e pulsar o coração em paixão, encanto, desejo, posse e outras sensações que não lhe eram familiares, porém eletrizantes, Kaspar apreendeu a “Imagem”, enquanto noção de si, de sua consciência, de espaço e tempo, do pensamento por imaginação (imagem em ação, como parte ativa do pensamento), de linguagem, de conhecimento, etc., ainda que de modo subdesenvolvido com problemas de raciocínios e falhos entendimentos de certos conceitos, não foi amalgamado à um ideário cultural coercitivo, a um senso comum e, tampouco, integrado no coletivo social, porquanto era diferente dos demais, apesar de ter recebido a herança cultural daquela sociedade, apesar de ter absorvido a educação/hominização.  

O livro “Temas da Filosofia – Maria Lucia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins”, faz menção, no cap. 1 A condição humana (1997, p. 26-30), que tal figura histórica só se tornara homem quando o seu processo educativo teve início, isto é: a partir da transmissão da tradição cultural ocidental do homo sapiens (o homem que sabe, tem consciência da realidade), passou a ser considerado um “homem”.  


Tornar-se homem: inserção a um mundo idealizado e construído

Ora, um fragmento duradouro que vai desde um amplo quarto em que Kaspar estava inserido, até a integração da civilização demonstra a vulnerabilidade e ausência de estímulo e cultura o qual era submetido: nada mais fazia e sabia, senão comer, beber, brincar com o cavalinho de madeira, pronunciar palavras que lhe eram estranhos e, mecanicamente, transcrever um nome que lhe era desconhecido. Kaspar era destituído de uma cosmovisão e era provido, tão somente de um arcabouço genético, para suprir suas necessidades fisiológicas.  

Posto por alguém na praça pública de Nuremberg, se apresentou diante de todos com um estereótipo idealizado: religioso, um suposto aspirante de uma elevação hierárquica, servidor do rei e portador de uma identidade. Tais fatos se veem pelo livro “Coletânea de Pensamentos Espirituais”, um papel contendo as “Seis Orações Piedosas”, um terço, a mensagem composta na carta e a sua assinatura, na cena onde o capitão e os demais o encontram. Em um dado momento, em que o Kaspar é conduzido a torre, é dito: “Temos que enquadrá-lo nas normas legais”.  

É plausível conjecturar que tal enunciado não visa tão-só a inserção no conhecimento de um sistema judiciário alemão, mas além disso, à própria sistemática das criações humanas que existem por milênios e se manifestaram por milênios, onde as tais, posteriormente ao próprio surgimento, afetam seu criador: técnica, linguagem, sociedade, a cultura, inteligência, etc. (GUEDES, 2015, p. 38)

Ele era extremamente excêntrico (fora do centro), porquanto, antes do processo civilizatório, não passava pelo prumo dos essencialistas Platão e Aristóteles, que cunhavam a argumentação da plenitude humana; não poderia alçar para a realidade eterna e idealizada do homem e nem refinar suas potencialidades individuais, tendo em vista que Hauser não pensava durante o cativeiro e nem discernia entre a realidade e o universo onírico.

Não usava da racionalidade, porquanto era um espectro inerte que sentia, mas não compreendia, via, contudo não enxergava. Tampouco poderia construir sua própria existência criando sua essência particular, tal como expressava Jean-Paul Sartre, pois não conseguia assumir a responsabilidade da sua própria existência; nem obteve valores e objetivos de vida a partir dos desafios encontrados nos meios de vida, com atividades produtoras de sua existência, tal como dizia Karl Marx, porque não era um homo faber, transformador do mundo, senhor de técnicas e integrante de uma classe social (ARANHA et al., 1997, p. 30, 32-35).

Progressivamente, após o capitão identificá-lo, Kaspar é educado/hominizado com saberes básicos do cotidiano, como a civilidade na alimentação e a poesia, além da tentativa de retirar da incúria a noção de perigo, por intermédio do fogo (esta eventualidade clareou o aspecto psicológico da dor do personagem, vazia de emotividade e expressividade, movida apenas de uma reação fisiológica) e da espada, sem nenhuma demonstração de autodefesa. 


Ideologia e alienação

Todavia, a autonomia crítica e intelectual é demonstrada após os dois anos de tutoria, onde a perspectiva dele é ampliada de tal modo que, assim como uma criança que indaga questões elementares do ser e do viver aos pais, porém os tais o repreendem com justificativas simploríssimas, ou ao algum neófito fiel que indaga dos porquês, mas é posposto da congregação mesmo permanecendo em dúvidas, tal era a posição de Kaspar ante um mundo onde “o homem é levado a pensar, sentir e agir da maneira que convém à classe dominante” (ARANHA et al., 1997, p. 51-52).  

Podemos contemplar três principais matrizes ideológicas: a religiosidade, patriarcado e a nobreza. Todas essas matrizes são personificadas, se transformando de abstrações inanimadas para personagens do enredo, que propagam ou não seus pensamentos, porém semelhantes em um aspecto: já naturalizaram as ações humanas, achando ser a ordem natural das coisas, sem haver nenhum questionamento ou dúvida. 

Em primeiro lugar, quando os sacerdotes religiosos vão à Kaspar inquirir sobre os efeitos de sua pregação, depois dele haver respondido que, durante o cativeiro, não havia noção imanente sobre a transcendência, porquanto não pensava em nada, ele confessa estar acometido de uma incompreensão da fé, justificado por uma possível necessidade de estudo, aprendendo a ler e a escrever. Todavia, ele é confrontado que não é necessário se utilizar da razão para crer, que deveria ser uma tomada de decisão pelo que se dá a entender, sem ser premeditada. Isto contraria o bom senso e, ainda mais, a tentativa continuada do Cristianismo de amalgamar discursos que incutem Razão e Fé, porquanto o líder religioso utiliza-se, além disso, uma postura imponente e agressiva, com elevação vocal e recitação de palavras prescritas.  

O fato é que o conhecimento religioso, nos casos que optam em obstruir a razão, torna-se perigosa ao prezar por uma alienação do não-pensar autônomo, às vezes pondo uma sistematização de noções de uma mundividência, onde a ciência está morta; o extremismo religioso é uma consequência danosa! 

Quando o homem se tornou o “homem civilizado/homem humanizado”, numa concepção puramente evolucionista, ele por poder fazer uso do pensamento (a cognição interagindo com o cognoscível), criou-se a religião como uma das formas mais primitivas de conhecimento e expressões individuais e coletivas, no propósito de ser partícipe de uma sacralidade e de intentos melhores que o dele; o extremismo é alienador quando negligencia seus próprios credos e apologias originárias e, consequentemente, adere a um modus operandi baseado no medo e represália. 

Em segundo lugar, o patriarcado demonstrado através do diálogo com Kaspar e a governanta, a Sr..ª Kathe, transparece, tal como a própria clareza das águas, as diferenças de funções e acessibilidades entre pessoas de distintas sexualidades, bem como a naturalização dessa organização sociocultural, de modo a crer que a delegação se dá por consequência de meras justificativas biológicas. Ele insta em indagar aquilo que já fora respondido pelo Sr. Daumer, demonstrando insatisfação do que ouviu: O que a mulher faz? Só servem para ficar sentadas? Ela só cozinha e faz crochê? 

Naquele fragmento histórico, a divisão do patriarcado se fundamentava numa forma de uma hermenêutica judaico-cristã, assim como numa espécie de “Capacitismo Sexual”, onde haveria a inerente funcionalidade predestinada para cada sexo. Se houvesse uma troca de papéis, assumindo a poltrona do outro, falhariam fatalmente, como se as relações humanas construídas historicamente tivessem, em sua essencialidade, uma aplicação específica para cada gênero.  

A governanta estava num estado de alienação, onde os porquês estão distantes da si, visto que lhe fora incutido, sem pestanejar, ideais coercitivos e naturalizados, e o Sr. Daumer, indivíduo de um grupo privilegiado, portador da doutrina ideológica vigente, é o quem deve exercer a voz explicativa. Naquela época, a supremacia intelectual, a aspiração política, o domínio do capital, todo o patrimônio cultural da poesia, música, literatura e outras formas de artes, a mão de obra remunerada, sobretudo, o trabalho intelectual. Enfim, era pertencente ao homem. 

Por último, transitando às cenas preliminares que antecedem a dupla tentativa de homicídio à Kaspar, vemos no escopo do filme a ocasião em que ele, após se tornar uma figura afamada como “Filho da Europa” - de traços rústicos, retrógrados e rudes, que beiravam, para alguns, ao animalesco -, foi a uma festa. Lá percebemos diversas regras da civilidade, a divisão hierárquica numa localidade só, com a presença do prefeito e sua esposa, além da validação de um indivíduo com base nas vestimentas e conhecimentos considerados elevadas.  

Neste fragmento, é ratificado, após diversas evidências, que ele era um indivíduo que não se encontrava naquele mundo, naquelas tradições, por se sentir extremamente sufocado ante aquelas dezenas de convidados da anfitriã e, além disso, por não apreender aspectos elementares de um cidadão aceitável/exemplar. O desamparo inicial, enquanto criança, refletida em lágrimas numa das cenas em que põe um bebê no colo, uma das primeiras manifestações linguistas conscientes de Kaspar, expressando se sentir desprezado pelas pessoas, a afirmação que os homens são como lobos, de que a vida lhe é um golpe duro, etc., demonstram a sensação de desencaixe e de indiferença pelo mundo Todavia, o mundo foi sobremaneira indiferente a Kaspar, mais claramente a partir da dupla tentativa homicídio, que ocasionou em seu falecimento. 

No final das contas...

Em síntese, Kaspar Hauser vivenciou o breve período civilizatório como um ser antropomorfo, cujas características do processo educativo, de hominização, se mesclaram aos seus traços interpretados como animalescos, primitivos e retrógrados; simbolicamente, prestando uma conjectura plausível, o luto de sua morte se finda como um expatriado de seu próprio mundo, não sendo pertencente a ele. Ao fim, após os exames em seus órgãos interiores, sobretudo o cérebro, na última cena, a vilania que oprimia a Kasper e, suscintamente, aos indivíduos presos pelos fios de marionete regidos por ideologias e classes dominantes, é transferida para o próprio oprimido o qual, segundo a narrativa criada, sua anomalia e estranheza lhes eram inerentes e incuráveis. Sua natureza excêntrica era irremediavelmente renovada, por sempre se metamorfosear contra uma sociedade estática e por ser mais lúcido, do que os mais lúcidos e mestres dos rudimentos regentes daquele mundo. 



REFERÊNCIAS.

ARANHA, Maria Lúcia De Arruda ; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1997. ISBN 85-16-00690-5. 

GUEDES, Enildo Marinho. Ser em Fuga: O Humano em Construção. 1. ed. Maceió: Edufal, 2015. 27-48 p. ISBN 978-85-7177-949-5.

MOZART, Wolfgang Amadeus. Dies Bildnis Ist Bezaubernd Schön. 1791. Disponível em: https://www.letras.mus.br/mozart/dies-bildnis-ist-bezaubernd-schon/traducao.html. Acesso em: 20 fev. de 2025

O Enigma de Kaspar Hauser Legendado. Vídeo. 1h49min36s. Publicado pelo canal Inilibras Treinamento e Consultoria. 30 abr. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0uZ5a0WEmBE 



Jonnathan Kauã, nascido em 2005, Alagoano nascido em Delmiro Gouveia. Desde cedo demonstrou interesse pelas coisas, sobretudo pelo sentido que nelas continha, como uma experiência existencialista que serviu para querer descobrir a razão do mundo e mapeá-la por meio da escrita. Inicialmente inspirou-se na estilística de Aluísio de Azevedo, especialmente em “O Mulato”, ao descobrir e considerar as características próprias da escrita e descobrir assim a Literatura. Hoje é discente do curso de letras na UFAL, Campus Sertão. Participa do Sarau Ieda Damasceno da Biblioteca Municipal em Delmiro Gouveia. É bolsista do NEART-UFAL (Núcleo de Expressão Artística) e voluntário do NELA-UFAL (Núcleo de Estudos de Literatura Alagoana).