Aponto meu lápis com faca, livro de contos de Socorro Nunes

 por Taciana Oliveira__



Em Aponto Meu Lápis com Faca, Socorro Nunes constrói um mosaico literário onde a escrita se torna um instrumento afiado para dissecar a realidade de um Brasil profundo, marcado pela miséria, pelo abandono e pela repetição cíclica de destinos imutáveis. Seus contos habitam Morada Velha, uma cidade minúscula e inescapável, que, mais do que um lugar geográfico, representa um estado de existência — um fardo que seus habitantes carregam, mesmo quando partem para terras distantes.


As protagonistas dessas narrativas são mulheres que lutam para sobreviver em meio a uma estrutura social opressora. De Josefina, cuja beleza se torna um convite à violência, a Raimunda Fiapo, que cria raízes no rastro de sua própria rotina limitada, as personagens femininas de Nunes vivem aprisionadas em um ciclo de privação, no qual a esperança se resume a rezas incessantes e à adaptação à penúria. A cidade grande tampouco surge como salvação: quem troca Morada Velha por um barraco miserável na periferia de Belo Horizonte, como em "Shyrley", somente se desloca em um mesmo espelho de precariedade e exclusão.


A segunda parte da obra expande esse universo, levando seus personagens a Londres e outros cantos do mundo, sem, no entanto, permitir-lhes uma verdadeira libertação. O exílio se torna uma nova Morada Velha, com suas próprias regras implacáveis e uma hostilidade que não acolhe os que vêm de fora. O mundo, em qualquer geografia, segue sendo um território de extravio e desalento.


A escrita de Socorro Nunes é direta, cortante e precisa, compondo um retrato implacável de um Brasil que se repete e de um mundo que pouco oferece aos deslocados. O lápis afiado da autora não romantiza a precariedade; pelo contrário, assinala suas marcas cruamente, tornando Aponto Meu Lápis com Faca uma obra tão incômoda quanto essencial.


Trechos do livro


“Nada mais me serve como identidade nem registro de quem sou, depois que descobri que nos papéis de pão posso escrever tudo, todas as veredas trilhadas, os garranchos que se enlaçaram nos meus cabelos, as pétalas das flores que caíram, uma a uma, após o vento frio na noite escura que chegou sem aviso prévio. Não tenho fotografias minhas em preto e branco nem coloridas, não me servem como armas para enfrentar a hostilidade dos cegos nem o redemoinho dos dias quentes que se abatem sobre mim de quando em vez. Não fujo para as montanhas em busca de abrigo, nem me escondo atrás da pitombeira, tampouco grito no alto-falante da igreja. Prefiro fazer um círculo com a ponta do lápis, me embrulhar no papel de pão já talhado e escondido no bolso esquerdo dos meus vestidos. A cor deles? São variadas, vibrantes, com dominância do amarelo alaranjado que é pra deixar claro que o sol nasce em muitos céus.”


Aponto meu lápis com faca, página 15


“os homens sentados na praça parecem os mesmos não pode ser devem ter se passado muitos anos as feições provocam lampejos de lembranças daqueles homens fumando cigarro de fumo de rolo e bebendo cachaça estão mais velhos será que ainda jogam o bicho. a roleta de seu raimundo parou de funcionar preciso saber porque eu jogava no bicho e sempre ganhava uns trocados pra comprar o material da escola meus pais eram pobres e os cadernos eram encapados com sacola plástica disso me lembro bem. aqui deveria ter um museu para ajudar as pessoas a se lembrarem das coisas desimportantes não tem a cidade abandonada não sabe de si nem quer saber é o que me parece posso estar muito errada são impressões de quem chegou esses dias e não recobrou totalmente os sentidos.”


Não sei o que me ocorreu, página 107


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Editora: Urutau

Formato: 13×19 cm
Páginas: 112 páginas



Socorro Nunes é cearense radicada em Minas Gerais. É doutora em Educação e professora titular da Universidade Federal de São João del-Rei. Publicou os livros de poesia Meu samba (Penalux, 2015), Miragem (CEPE, 2015), O que ficou da Fotografia (Linguaraz, 2016) e As flores daqui são duras (Penalux, 2021). É co-autora, com Pedro Américo de Farias e Cristiano Aguiar, do livro de ensaios Ficção em Pernambuco (CEPE, 2021). Tem poemas publicados em diversas coletâneas.






Taciana Oliveira — Natural de Recife–PE, Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) com Pós-Graduação em Cinema e Linguagem Audiovisual. Roteirista, atua em direção e produção cinematográfica, criadora das revistas digitais Laudelinas e Mirada, e do Selo Editorial Mirada. Dirigiu o documentário “Clarice Lispector — A Descoberta do Mundo” Publicou Coisa Perdida (Mirada, 2023) livro de poemas.