por Raphael Cerqueira__
Foto de frank mckenna na Unsplash
Chegam pela mesma trilha por onde vim. Pronto, acabou o sossego, resmungo, antevendo a turistada brotando logo em seguida. "Cedinho assim, meu patrão, ninguém vai praqueles lados, a água é um gelo", garantira o recepcionista da pousada.
O sol bolina a imensidão esmeralda à minha frente, a brisa traz algumas reminiscências.
Chinelos nas mãos, os intrusos param um pouco adiante. O de cara redonda e entradas salientes tira a Canon da bolsa, corre os olhos miúdos pelo entorno. Acena para mim. Retribuo o cumprimento, mais atento ao seu companheiro, que deixou a mochila na areia junto às havaianas e agora despe a regata. Bastante jovem e de singular beleza; rosto imberbe; corpo liso e bronzeado; cabelos num tom intermédio entre preto e castanho. Parecidíssimo com os rapazinhos que frequentam o apartamento vizinho ao meu, e que tantas vezes foram alvo de acaloradas discussões nas reuniões condominiais.
— Essa luz vai ajudar pra caralho, comenta o cara-redonda.
O garoto ajeita a cabeleira. Ah, a minha também já foi assim... E para não me perder em saudosismos inúteis, tento me entreter com o voo das gaivotas. Mas, afora os cabelos, ele é bem diferente do adolescente que fui. Eu não era feio, também não era bonito; usava óculos de aros grossos; vivia emburrado pelos cantos; não tirava a camiseta em público (regata não usava de jeito nenhum); detestava sol, praia, piscina e gente, sobretudo, gente.
A brisa traz o bimbalhar dum sino. As gaivotas, respeitosas, aquietam o facho. Os forasteiros, acho, nem deram por conta que os fiéis são conclamados… Bem que ouvi, na pousada, uma senhorinha empolgadíssima comentar com as outras: “Aqui pertinho tem uma igreja e, uma vez a cada quinze dias, o padre celebra a missa em latim". Engraçado, toda excursão tem dessas senhorinhas carolas.
— Dani, vamo começar?
Uma gaivota, num rasante, para diante de mim. Juntos, miramos o Dani. Agachado, corre o fecho da mochila, tira sungas de cores variadas. Qual delas primeiro, pergunta. Sua voz é suave, tão suave como devia ser a voz dos garotos que, filosoficamente, acompanhavam os banquetes descritos por Platão.
— Tu põe a vermelha, recomenda o outro, ajustando a câmera. Vamo fazer uma composição com esse coqueiral no fundo.
Profissional, penso. Ressabiada, a gaivota saltita entre as conchas, torna a olhar pro Dani, que tira o short. Previdente, ou já acostumado à vida de modelo fotográfico, veio trajando a cor requisitada. Quando adolescente, decididamente, não cheguei aos seus pés. E, para afastar outras reminiscências, bebo o resto do coco que trouxe da pousada.
A sunga ajusta-se perfeitamente à robustez do seu corpo, o vermelho lhe cai bem, muito bem. A pequena emplumada, pelo visto, partilha do meu pensamento: se artistas gostam de ser admirados, então, admiremo-los.
E não é que o moço leva jeito! Para, olha a câmera, o mar, a linha do horizonte; mantém o queixo levemente levantado; o tronco reto; faz caras e bocas.
Raios de sol avançam entre os coqueiros pondo em relevo seu formidabilíssimo perfil. O retratista pede um sorrisão. Tomara essa câmera seja tão boa quanto a que deixei no quarto, rogo, já arrependido por não tê-la aqui comigo.
— Baixa um pouco a sunga... mais um pouquinho... aê, ótimo. A galera vai curtir tua marquinha.
Novos cliques, outros ângulos.
— Agora tu podia tirar ela.
O garoto encara interrogativamente a lente. Incrédula, a gaivota olha para mim.
— Se tu quiser, claro. Mas é rapidão. Virado assim pro mar, esse solzão refletindo na água... vai ficar show.
Afastado o embaraço inicial, Dani larga a sunga na areia. Os olhos do cara-redonda brilham maliciosamente.
— Tu deita ali de bruços agora, tipo um náufrago exausto.
Inegável: o desavergonhado tem imaginação, e das mais férteis. Também é inegável que o rapazinho topa qualquer parada. O cachê deve ser muito bom, talvez anseie pela fama... Enquanto rumino tais pensamentos, outras emplumadas vêm se juntar à coleguinha.
— Show de bola. Veste a sunga e sobe ali.
Dani escolhe a azul-celeste e, feito um cabrito, trepa nas rochas para onde aponta o retratista.
Lentamente uma escuna vai largando músicas chatas e ruidosas em alto-mar. A plateia aqui na prainha se incomoda. Enquanto isso, braços cruzados e altivamente ereto, o garoto parece deslumbrado com a paisagem.
Se alguém naquela embarcação olhar agora para o continente, talvez considere miragem o que seus olhos veem: um Tarzan, de inigualável porte, encarapitado numa rocha, a brisa a vadiar por seus cabelos; um reles fotógrafo que ora expande, ora reduz o zoom à cata de ângulos; metros adiante, um quase-velho, extasiado, contempla tudo.
O que diria aquela tripulação, interpelo às aves, que me ignoram solenemente.
— Valeu, ficou show. Simbora pra água.
O jovem Tarzan assente, saltando à areia. Nossos olhos, pela primeira vez, se cruzam. Sorri, um sorriso de alvorada ainda não ofertado à Canon. Envergonhado, olho para minhas mãos, feias e sujas, deixo velhas lembranças se adonarem de mim.
De repente o jovem passa correndo, desabalado e nu, a caminho do mar. Agitadas, as aves ganham novamente o céu. O retratista continua a devorá-lo com as lentes, o sino a repicar.
E eu decido, antes que seja tarde demais, me juntar às senhorinhas carolas para ouvir o sermão em latim.