Ainda precisávamos dele por aqui, Senhor! | Crônica de Luiz Henrique Gurgel

 por Luiz Henrique Gurgel__                                                     


                                                             
O carismático e humano Papa Francisco se foi. Sua partida fez lembrar que minhas histórias com mortes de papas começaram na infância. A primeira foi com Paulo VI, quase onipresente lá em casa. A benção papal, com o retrato e o selo oficial, ficava na parede da cozinha com seu olhar sério a bendizer nosso café, almoço e janta. Também havia um santinho dele junto ao livro com os documentos do Concílio Vaticano II, num lugar de destaque na estante. O título na lombada me encafifava, sem entender por que existiria um Vaticano “dois”.

Na manhã fria de uma segunda-feira, 7 de agosto de 1978, dormindo o sono dos meninos justos, minha mãe veio me chamar como fazia normalmente de segunda à sexta, bem cedo na hora de ir para a escola. Bem que eu quis, naquele instante, que uma bomba explodisse o colégio das freiras na rua Padre Capra. Mas desta vez uma surpresa, ela disse que não haveria aula e já imaginei — assombrado — o velho convento em ruínas, pegando fogo, freiras gritando, quando minha mãe completou: o papa morreu. 

A disfarçada euforia pelo dia sem escola murchou e se encolheu envergonhada sob o edredon. Com todo meu inocente cinismo infantil, pensei que Deus devia tê-lo chamado por algum motivo especial e insondável, afinal era o papa. 

Criança devidamente católica de pai, mãe e de gerações familiares a perder de vista, incluindo judeus portugueses, cristãos novos lá no século 17, no Recife, tudo isso me afetava profundamente. Meu pai, ex-seminarista que só não virou padre porque se desentendeu com o superior. Minha mãe, catequista, palestrante em cursos de noivos e movimento de Cursilhos de Cristandade, tinha sido membra da JOC, a heroica Juventude Operária Católica. Ainda tinha um tio, irmão do meu pai, bispo lá em Minas, e uma tia, outra irmã do meu pai, missionária salesiana no Amazonas. 

Tudo, portanto, para achar que eu não tinha nada a ver com aquilo e que Deus sabia bem o que estava fazendo ao chamar o papa para junto de Si. Menos de dois meses depois e eu mais uma vez tinha problemas com um trabalho escolar. Véspera da entrega e não fizera patavina. Apelei, quem sabe existiria algum padroeiro de meninos vadios que não fazem lição de casa. Prometi dirigir a ele minhas orações. Resposta não veio, claro que Deus, do alto de sua sabedoria, não se importava com a minha aflição. 

Mal consegui dormir naquela noite, vieram pesadelos e apreensivo, já estava acordado quando minha mãe veio me chamar. No rosto, a angústia de menino pidão não a comoveu ou ela nem percebeu e disse: hoje não tem aula, o Papa João Paulo morreu. Meus olhos arregalaram. Naquelas últimas semanas, acompanhamos em casa pela primeira vez na TV todo o processo de eleição de um papa, encantados com o cardeal Albino Luciani, figura discreta e doce, e que ficara tão pouco tempo no Trono de Pedro, apenas 33 dias, era 28 de setembro. Eu me rendi, mais uma vez, à vontade soberana de Deus, imaginando que levar um Papa ao Paraíso só para me livrar da entrega de um trabalho escolar era demais. Por via das dúvidas, no caminho para a escola, um dia depois e com o trabalho nas mãos, não parei de olhar para o céu, preocupado com algum raio que podia descer do claro azul e me fulminar ali mesmo. Pelo mesmo temor, evitei cortar caminho pelo cemitério. 

Deus, na certa, estaria precisando de santos homens junto Dele para tratar de assuntos muito sérios lá no céu. Era mera coincidência o fato dessas coisas acontecerem quando eu pedia ajuda divina para uma prova, um trabalho... Noutras ocasiões semelhantes, em conversas com o Altíssimo, indaguei se Ele não estaria precisando de mais gente importante para ajudá-lo nos destinos de um mundo tão conturbado. Mas logo me arrependi de tocar nesse assunto com Ele. 

Nesta semana que passou, eu não tinha nenhum trabalho para entregar quando se foi Francisco. Homem da Igreja que mais marcou minha herança Católica. O hermano foi um transformador, gente como a gente, cristão raiz. Como vai ser ficar sem o sorriso, as piadas, e sua voz serena e indignada com as coisas do mundo e de seus poderosos? Que falta fará a voz que clama contra o genocídio em Gaza, contra a destruição ambiental do planeta.

Aquele menino que aceitava os desígnios de Deus ao levar papas para o céu, desta vez ficaria acabrunhado, cabisbaixo e triste, sem entender. Será que Deus se enganou? A gente é que precisava dele por aqui, Senhor!



Luiz Henrique Gurgel é jornalista, professor e pesquisador. Mestre em Literatura Brasileira pela USP, é autor do livro de contos “amores malfadados” (Ed. Primata, 2020) e "Porque era ele, porque era eu e outras quase histórias” (Caravana Editorial, 2023)