Isto é o Rio | Crônica de Raphael Cerqueira

 por Raphael Cerqueira__


Fotografia de Carlos Monteiro



Passo por uma simpática feira, montada no entorno do espelho d’água. Uma senhorinha, feições andinas e olhos opacos, toca flauta. Há tristeza nostálgica na melodia, a despeito dos tons vivazes destes idos de abril. Cato alguns trocados no bolso, deixo-os tilintando no tapetinho de listras. Sigo flainando rumo à praia. Vermelha, leio na placa, e anoto no celular: pesquisar a origem deste nome. Sou um turista, sobretudo, curioso. Assaz insólito, certamente escreveriam a meu respeito aqueles escritores de antanho, Machado talvez, se me vissem a perambular pelos largos e ruelas cariocas.

Mas, como dizia, estou flainando. Sem dar bobeira, claro, como me recomendaram no hotel. Tranquila e puerilmente, um rapaz se troca à sombra da amendoeira; outro, cabelo platinado e um God´s plan tatuado sob o umbigo, puxa um beque vidrado no horizonte. Uma morena em flor, cujo biquíni reflete a azulíssima manhã, passa por mim, olhos mais atentos – e com toda razão — aos rapazes. 

“Isto é o Rio”, sussurra-me alguém num sotaque europeu. Olho em torno: pessoas caminham, tiram selfies; à minha frente, a imensidão azul-esverdeada; no alto, o bondinho sobe, lenta e turisticamente. Como se adivinhasse o que procuro, a voz retruca: “Eu proferi a frase, seu palerma.”

Não, não é possível. Bem, talvez seja, afinal, como disse Machado, “tudo é possível debaixo do sol”. Pensando nisso, levanto novamente a cabeça. Esculpida sobre o pedestal de granito, mais de três metros acima de mim, um par de olhos brônzeos fita as folhas espalhadas no chão. Ajeito os óculos que, sem dúvida, precisam urgentemente de novas lentes. Inscrito no pedestal, em letras garrafais, Chopin. 

Olhando indiferente para o chão — chão que deve estar farta de ver, todos os dias, todos os anos de sua metálica existência — a estátua repete: “Isto é o Rio”. 

Um casal passa agarradinho; ele leva um tigre tatuado no braço, ela o microscópico biquíni. Uma dona, sessenta e poucos carnavais, camiseta desbotada da Mangueira, recolhe latinhas. Um caiaque rasga o esverdeado do mar, pombos sassaricam na areia.    

Penso na enigmática frase. Crítica, ironia ou mera constatação, me pergunto. Súbito, outro sussurro: “E por isso eu estou aqui”. Lembro aquela canção do Roberto. Será que Chopin ouve Roberto Carlos? Não me admira, afinal, são vizinhos de bairro há tantas décadas... Um ambulante, talvez achando esquisito minha pessoa plantada diante da estátua, oferece uma cadeira-de-praia. Recuso. Água de coco, mineral, cervejinha, picolé? O negócio dele, percebi, é me empurrar qualquer coisa. Aceito o coco. Antes, porém, peço que me fotografe ao lado da estátua. Como todo bom comerciante, nada comenta: sabe que turista é bicho bobo mesmo. “Estrambótico”, resmunga a estátua, enquanto poso para a câmera. 

O ambulante corre até a barraca, volto para o Chopin. Tadinho, tivesse as mãos mais livres, poderia enxotar as aves que tingem de guano sua cabeça. Mas, nessa posição de quem se entrega à introspecção, quiçá à saudade, é mesmo difícil se proteger. 

A frase estatual se repete: “Isto é o Rio”. Sinceramente, não sei mais se é a figura quem fala ou alguma entidade marinha cuja voz a brisa traz... Falando em trazer, aí vem meu coco. Tenho vontade de perguntar por que esculpiram Chopin ali, qual sua relação com esta praia, mas deixo pra lá: já dei bandeira demais, daqui a pouco pensarão que sou biruta.

A maresia se intensifica. O rapaz, agora trajando short e regata, divide o baseado com o de cabelo platinado. Volto a flanar, pensando no quão injustos são os escultores: lá em Copacabana botaram o pobre Drummond — famoso apreciador do mar e das mocinhas que buscavam o mar — de costas para a praia, condenado a olhar eternamente carros e prédios. Aqui, meteram o infeliz do Chopin, cabisbaixo, restando-lhe apenas a árdua tarefa de, em meio ao alarido dos banhistas e visitantes, tentar escutar o compasso das águas.

Espio pela derradeira vez. A mão, quase concha, seria uma tentativa de captar os ecos de sua amada Aurore Dupin que os ventos tropicais um dia trarão dalém mar? Ou Chopin quer apenas apurar o ouvido para a melodia da flauta lá da feira e, a partir daquelas reminiscências andinas, criar outra balada, talvez um prelúdio?



Raphael Cerqueira Silva, é mineiro São Geraldo, servidor público, graduado em Direito e História, e cronista nas revistas Vicejar e Conhece-te. Publicou Confissões, livro de contos, e A Vida Segue, livro de crônicas.