Uma terra chamada ilha, de Adrienne Myrtes | Resenha de Adriane Garcia

 

por Adriane Garcia__

 

             
Uma terra chamada ilha, da escritora Adrienne Myrtes, fala de um labirinto amoroso, no qual o desencontro dos desejos e as descobertas tardias geram as fatalidades do caminho. O protagonista, Guilherme, procura por sua amada Maria Teresa. O romance começa com a viagem que ele empreende até uma ilha para onde, supostamente, sua ex-esposa teria ido, após a separação dos dois. 


Trata-se de um romance que conta tanto uma história de amor fracassado e tentativa de reabilitação de um relacionamento, quanto uma espécie de metáfora para os resultados desse rompimento na cabeça do narrador. A ilha, assim, assume signo e significado: estar ilhado, sozinho. Adrienne Myrtes consegue que sintamos a agonia da incomunicabilidade de Guilherme, aquele que fala/escreve tarde demais. A tentativa de sair da condição de ilhado se faz por cartas. A escrita é a ponte que quer ligar a ilha a um continente, Guilherme a Maria Teresa, Guilherme a si mesmo. Também a viagem se assume como signo e significante. Ela se dá como transformação, jornada interior que se elabora via palavra escrita, dentro de uma espécie de sonho.  


Logo sabemos que o relacionamento de Guilherme e Maria Teresa foi marcado pela distância, mesmo que os dois estivessem fisicamente próximos, dentro da mesma casa. Aqui entra a situação das distrações virtuais. As pessoas se desconectam umas das outras, apesar de as redes prometerem o contrário. Maria Teresa cansou de solidão acompanhada. Guilherme aderiu à vida virtual em detrimento da vida real. Depois, já na ilha, há uma cena interessante da urgência do protagonista em encontrar uma lan-house, seu desespero por estar desconectado da internet revela o quanto ele estava dependente de conexão virtual, achando que a virtualidade era um possível atalho para encontrar Maria Teresa. A ilha força-o a fazer conexões com o entorno, com as forças naturais, com a criança. Ao encontrar Fidel, o menino, ele é impulsionado a viver o presente. A ilha também o leva a fazer conexão com o velho, alguém que, a princípio, gera nele a sensação do “estranho familiar”: “O velho mais o cachorro e mais o sono. Guilherme não soube a razão, mas aquela soma lhe provocou inquietação no pensamento, cócegas na caixa craniana. Não gostou. Lembrava-lhe coisa desconhecida, e como se lembrar de algo que não se conhece?


O romance é narrado ora em primeira, ora em terceira pessoa, sendo que em vários momentos essa narração se contamina, fazendo com que o leitor desconfie tratar-se sempre de Guilherme. Outra pista é que nas duas vozes narrativas o pronome “lhe” usado no lugar de objeto direto, como um cacoete de fala ou um coloquialismo, sugere tratar-se do mesmo narrador. Utilizando uma linguagem rica em metáforas e imagens poéticas, a autora mostra um narrador que debate consigo mesmo a respeito da própria escrita, sua função para si, antes de tudo expressiva. Guilherme se expressa como quem é, um homem que trabalha com computadores e que não é acostumado a escrever, trazendo para o texto de suas cartas uma espécie de amor declaratório, açucarado e cheio de culpa. Suas cartas são românticas, melosas e hiperbólicas por vezes, sob o som de músicas bregas tocadas na rodoviária. É possível que ao fechar o livro durante a leitura, saia-se cantarolando canções que impregnam na cabeça: de Márcio Greyck, Fernando Mendes, José Augusto ou Roberto Carlos.


O livro possui ilustrações da própria autora, que é artista plástica, dando materialidade para a ilha que, antes de ser habitada, habita o imaginário do protagonista Guilherme. O que ali é realidade? O que ali é fantasia? Qual o nível de confiabilidade de Guilherme? Que processo ele realmente vem atravessando?  Suscitando perguntas, Adrienne Myrtes alcança sutilezas da alma humana, por exemplo, na cena da compaixão de Guilherme com o escaravelho, mostrando para quem lê a complexidade de alguém que não julgávamos capaz de um gesto tão desinteressado — ali onde as posições se invertem e o adulto é piedoso enquanto a criança é cruel.  Uma terra chamada ilha é uma história que faz refletir sobre a implicação de cada um nos relacionamentos tecidos na própria vida.


A vastidão do universo virtual, galáxias de fumaça, possibilidades infinitas a nos abraçar quando nos postamos diante de uma tela de computador e postamos o que sonhamos ser, imagens oficiais e idealizadas, um pacote cheio de necessidades ególatras embaladas em papel de seda e amarrado por laço de fita. Nenhuma ideia, nada mais eu via senão a lembrança de Maria Teresa. É, amigo, estou obcecado pela ideia de amar Maria Teresa e sei lá o real significado disso em minha vida. Existe significado real em qualquer coisa na vida? Não será nossa realidade tão inefável quanto meus quatro mil desconhecidos amigos virtuais? Buscamos amigos nos quatro cantos do mundo e nos isolamos no quarto para isso (...)

 




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Uma terra chamada ilha

Adrienne Myrtes

Romance

Baladeyra

2022



Adrienne Myrtes
é uma escritora e artista plástica brasileira. Mudou-se para São Paulo em 2001. Foi editora do site Cronópios. Publicou diversos gêneros literários: livro de contos, novelas infanto-juvenis e romance. Seu romance “Mauricéa” foi finalista do Prêmio Jabuti.






Adriane Garcia
poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020, Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis) e A Bandeja de Salomé ( Caos e Letras, 2023)