por Iaranda Barbosa__
Abayomi
Se
uma mentira dita mil vezes se torna uma verdade, o que dizer de uma mentira
contada, repetida e legitimada durante exatos 133 anos? O 13 de maio de 1888
não representou nem representa a libertação dos povos africanos escravizados.
Tampouco a Princesa Isabel é o símbolo maior de salvação e luta abolicionista.
Diversos são os mecanismos de força e opressão utilizados pelos grupos que
sempre estiveram no comando e almejam perpetuar a hegemonia do poder. Seja por
meio de ferramentas explícitas seja por estratégias subliminares, o pensamento
dominante criou a imagem do povo preto sob inúmeros estereótipos,
demonizando-a, inferiorizando-a, incapacitando-a. Logo, a sociedade reforça e
reproduz discursos pautados, sobretudo, no embuste da adaptação da mão de obra
negra em detrimento da indígena e na figura da herdeira de Dom Pedro II
enquanto a grande redentora dos negros escravizados.
É
na contracorrente dessas falácias, ainda hoje contadas e reforçadas por alguns
livros de História e nem sempre discutidas nas salas de aula, que surge a Antologia
das Mulheres Pretas, uma edição publicada pelo Selo Mirada Editorial,
destinada a reunir mulheres pretas conscientes da ancestralidade e das heranças
deixadas por guerreiras tais quais Dandara e Tereza de Benguela. Nesse sentido,
o encontro aqui promovido surge enquanto manifesto, repúdio, repulsa, recusa
para com a distorção, a falta de respeito, a não valorização da nossa história
e a negação da nossa cultura. Logo, a Antologia das Mulheres Pretas não
surge para comemorar esta data, mas sim para trazer reflexões, inquietações e
discussões a respeito de infindáveis problemáticas a ela relacionadas.
Sob
a temática “Liberdade”, cuja concepção abarca diversos sentidos e significados,
mulheres de todas as partes do país deixaram registradas suas inquietações e
visões de mundo através de materiais inéditos produzidos sob a forma de prosa,
poemas, fotografias e ilustrações. Espaços como este são de extrema importância
para que contemos nossas próprias histórias e pratiquemos o que Conceição
Evaristo denomina de escrevivências. É imprescindível ouvirmos nossa
própria voz e as vozes de outras mulheres com experiências e concepções de
mundo diversas para que possamos compartilhar vivências, pensamentos e
sentimentos, a fim de convergir para diálogos e aprendizados sem perder de
vista a luta contínua e árdua contra as mais diferentes e cruéis formas de
discriminação.
Lutamos
por sermos mulheres, lutamos por sermos pretas, lutamos, novamente recorrendo
ao pensamento de Conceição Evaristo, para forçar passagens e ocupar
espaços a nós ampla e historicamente negados por uma estrutura racista,
patriarcal, sexista e misógina que a todo momento cria estratégias e se utiliza
de instrumentos para impedir nossa ascensão social, política, intelectual,
econômica.
É exatamente por sermos conscientes desses sistemas opressores que decidimos nos unir e criar um espaço nosso, onde possamos nos expressar, utilizando nossas produções como arma libertária. Através da nossa arte mais e mais mulheres podem ouvir nossos gritos, protestos, louvores e apelos e compreender que eles são um convite para que elas também se juntem à luta. Locais de comunhão promovem o autocuidado, o amor próprio, a autoestima, o olhar sobre si mesma. Nesse sentido, a Antologia das Mulheres Pretas se propôs a disponibilizar gratuitamente os textos aqui selecionados, para que o número de pessoas seja cada vez maior. Dessa maneira, ampliamos o movimento simultâneo de nos aquilombar e expandir para irrompermos novos espaços e conquistarmos ainda mais a liberdade de corpos, cabelo, pensamento, espírito, voz, ação, enfim, para que alcancemos o rompimento de todas as grades, mordaças e amarras seculares que tentaram nos aprisionar, nos invisibilizar e nos silenciar em meio aos mais variados âmbitos.
Axé.
Iaranda
Barbosa
20 de
abril de 2021
Organização & Curadoria
Iaranda Barbosa
Liliana Ripardo
Juliana Berlim
Idealização
Argentina Castro
Capa
Deborah Dornellas
Revisão
Carla Vilella de Mattos
Diagramação
Rebeca Gadelha
Autoras (Prosa/ Poesia)
Facetas de liberdade – Amanda Izaias da Silva
Respiro – Lenita Ramos Vasconcelos
Eu poeta - Natália Pinheiro
Reflexões - Isabete Fagundes
Verdade e liberdade - Gabriella Poles
O sequestro – Alessandra Barbosa Adão
Quando existir é subverter – Desirée Simões
Poderosa filha Malkia – Sheila Martins
Liberdade às Yabas - Delma Gonçalves
Alguém viu a liberdade - Fátima Farias
Ilustrações/Fotografias
Iansã – Gilda Portela
Ensaio "Toda nudez será
castigada"– Amanda Cardoso
Danielle dos Anjos
Autoras Convidadas
Celeste Estrela (prosa)
Deborah Dornellas (ilustrações)
Lilia Guerra (prosa)
Taylane Cruz (prosa)
Download: aqui
Tyler Donaghy |
Sinto
um sono fora do comum. Um amigo diz que é fuga. Logo eu que não sou mulher de
fugir. Uma dor de cabeça que não para. Estamos todos a esperar a morte sem
possibilidade de luta. Adoecidos por dentro e por fora. Nem ruas, nem coquetéis.
Mascarados e sem sentidos.
Os cães
de casa me lambem dia e noite, os pés.
"Estou
preparado com produtos de higiene, só não estou para a morte" me diz o Zé
nosso amigo de infância e que, depois de anos e anos preso, agora liberto,
volta a andar por essa casa/abrigo. O nego Zé, vive de reciclagem e acaba de levar
o que restou da gelaleia, nossa biblioteca de rua. Estou triste, imensamente
triste com o mundo ao meu redor. E quem não?
Tenho
me deparado com cada tipo de gente que nem sei se vale à pena existir. Café por
cima de café para me manter em pé.
A mãe
mais forte que eu, sempre! Segura minha mão em cada, minha, tão minha,
escuridão.
" Você
foi contemplado com uma bolsa com de mais de 70% na sua pós graduação".
Para quê diabos quero outra pós-graduação se o destino é a morte? “
Já sei
de có e salteado para quê me serve o conhecer.
Cá
estou, sem saber pra onde vou, nesse mundo de cão.
Aprendo
e ensino e, toda vez, me perco.
Sou só
um corpo nú e empobrecido pronto, nem tanto, pra sofrer os botes. Ando tão
cansada. E quem não?
Minha
sobrinha aprendeu a palavra "renomada" e vive a dizer que sou uma
escritora renomada. Não sei o que ela entendeu bem dessa palavra, mas importa
que ela me veja de forma tão linda quando me vejo em processo de decomposição.
Hoje fizemos juntas, um cordel. Me enche de emoção ver um ser humano tão miúdo
em processo de criação.
Mas
hoje estou como uma bruxa velha querendo tão somente um fogo brando para
aquecer ferozmente as minhas ervas mortais. Hoje, eu sou uma árvore triste.
Argentina Castro - Mestre em Antropologia, escritora de poemas, contos, crônicas. Articuladora e Mediadora da biblioteca comunitária Papoco de Ideias.