A
expressão popular “bicho de sete cabeças”, assim como “fazer
muito barulho por nada”, refere-se à (infindável) capacidade
humana de projetar seus medos, ansiedades e angústias em situações
aparentemente sem grandes repercussões factuais. Este “bicho”
nos lembra a Hidra de Lerna, monstro da mitologia grega, também com
várias cabeças, e que tinha a capacidade de regenerá-las toda vez
que uma era cortada, crescendo outras em seu lugar. Via de regra, o
grande problema dos “bichos de sete cabeças” é justamente este:
assim como a Hidra, eles tendem a tomar proporções maiores do que
as reais, especialmente quando mal ou não resolvidos...
Neto, personagem interpretado por Rodrigo Santoro, vive com seus pais e sua irmã mais velha, e frequenta o Ensino
Médio. É um adolescente comum, com as dificuldades de
relacionamento com os pais, dúvidas e conflitos, como outros de sua
fase. Usa maconha esporadicamente com seus colegas, por lazer (ou
falta dele!), embora mantenha conservados os vínculos familiares,
sociais, escolares, etc. Certo dia, Neto e seus amigos, num ato de
rebeldia, vandalizam e picham um prédio, somente ele é preso pela
polícia e solto mediante a presença de seus pais: ele, autoritário;
ela, passiva. A partir deste evento e da posterior descoberta, por
seu pai, de um cigarro de maconha no bolso de sua roupa, a vida de
Neto vira de cabeça para baixo, com sua internação compulsória
num hospital psiquiátrico, autorizado por sua família, para um
pretenso tratamento para dependência química - apesar de nenhum
exame laboratorial, avaliação psiquiátrica ou psicológica ou
sequer entrevista ser realizada durante sua internação – baseado
exclusivamente na administração de medicamentos e exposto à
realidade de pacientes dos mais variados problemas de saúde mental e
de graus de gravidade clínica. Após um período de
ressocialização malograda, acontece uma segunda internação noutra
instituição, com efeitos terapêuticos e sequelas psicológicas
igualmente desastrosas. A nova internação nem surte os “resultados
esperados” (por quem?) como, ainda por cima, desestabiliza ainda
mais a saúde mental de Neto, novamente entregue a um tratamento
desumano, irresponsável e ineficaz. O que não era, até então, um
grande problema, agora o é. Um bicho de sete cabeças.
O
filme Bicho de sete cabeças (direção de Laís Bodanzky, 2001 ) nos possibilita várias
reflexões. Numa esfera subjetiva - embora representativa da
realidade de muitos jovens, tomando Neto como seu representante -
pensamos nas experiências de descoberta e de rebeldia durante a
adolescência, os conflitos geracionais presentes nas dinâmicas
familiares, causados pelo autoritarismo, repressão, incompreensão e
falta de abertura, e os impactos destas relações na vida afetiva e
no comportamento dos adolescentes. Podemos refletir também na
dificuldade em aceitarmos o “diferente” (eufemismo para
“perturbador” ou “indesejável” tanto nos indivíduos de
conduta transgressora juvenil como naqueles acometidos por
psicopatologias, por apresentarem comportamentos “excêntricos”
(outro eufemismo, desta vez para “inadequado”, “incômodo” ou
“desagradável?). Ambos os “perfis” são frequentemente
rotulados como desviantes e, em consequência, estigmatizados e
marginalizados.
Entretanto,
há uma reflexão – senão uma crítica – imprescindível neste
filme: trata-se de um símbolo da luta antimanicomial no Brasil.
Bicho de sete cabeças é baseado no livro Canto dos malditos, de
Austregésilo Carrano Bueno, que conta suas experiências de
internação em hospitais psiquiátricos, similares às de Neto.