por
João Gomes__
No
meu aniversário passado, recebi de presente um livro de uma amiga
tão apaixonada por livros quanto eu. Na dedicatória, Ecilda
aproveitou o título de uma só palavra para escrever: “Querido
João, espero que este livro te tire o Sono
e te leve para o mundo dos sonhos.” Após uma afetuosa visita sua,
mexendo nos livros da estante da sala, chegamos no volume de capa
dura, de cor azul noturno, publicado pela Alfaguara à altura da
qualidade literária do autor com tradução do japonês de Lica
Hashimoto e ilustrações de Kat Menschik. Perdemos muito tempo não
lendo ao menos os livros que ganhamos de presente, uma vez que os que
compramos passa pelo desejo de ter às vezes muito maior do que o de
ler, já que não precisamos comentar com alguém o que achamos.
Então
li Sono,
de Haruki
Murakami,
obra que fica entre o conto e a novela pela sua concisão
característica do gênero e tão genial na prosa limpa do autor. Em
resumo, podemos dizer que a protagonista cujo nome não sabemos não
dorme há dezessete dias. “É o décimo sétimo dia em que não
consigo dormir.” Quando passamos dessa oração em um parágrafo de
abertura, iniciamos o desespero de uma mulher que perdeu a capacidade
de dormir. E é com muita empatia já de cara e nenhuma cura, que
passamos a viver a rotina tão monótona da protagonista junto com
seu marido, um dentista dono de uma clínica próximo ao edifício em
que moram, e seu filho pequeno a quem sempre se despede da mesma
maneira ao levá-lo à escola. Falando assim, mais parece que o
enredo é um Japão que já conhecemos, todo certinho, que não
fossem os tremores de terra nada tira do lugar.
Mas
não, a prosa de Murakami não é para fazer dormir. Até poderia ler
um capítulo de cada antes mesmo de me recolher no escuro do quarto.
Mas não, é impossível ficar apenas com uma fatia, como a banda de
um Rivotril, e deixar mais do que está sozinha a narradora que nos
confessa seu sofrimento sem vitimismo algum. Então ela decide não
contar nada para ninguém, tomando proveito que o sono do marido e do
filho é tão pesado quanto o de uma pedra. E quando falamos aqui em
17 dias sem dormir, é 17 sem dias sem dormir mesmo, sem pregar os
olhos um segundo sequer, sem soneca no meio da tarde, ou o trocar o
dia pela noite tão comum entre os insones. Mas pode também ter sido
um surto psicótico, fazendo-a perder a contagem exata, podendo
também ter sido algumas horas. Falando assim, é assombroso,
kafkiano, como se tivesse se transformado num outro tipo de ser, uma
barata, ou alguém que vegeta ou um mineral.
À
medida que a narradora vai avançando, podemos pensar que o fato de
não dormir foi apenas o mote para que ela compartilhe sua
experiência, como fazem os comediantes em algum stand up temático.
Não que seja humorada, ela é a típica estudante de Letras que
desde criança teve uma vida voltada para a leitura, a ponto de
gastar toda a mesada com livros. Isso me fez lembrar o público
leitor de Murakami, que é mesmo um genial best-seller, e não
somente por essas identificações banais, mas pela abordagem diante
da vida num realismo repleto de cenas estranhas. Assim como eu não
resenharia este livro da forma comum como é feito por autoras de
blogs que me maravilho lendo após a leitura do livro pesquisado,
também Murakami não se limita a nenhum tipo de clichê. Como
costuma acontecer em grandes obras de arte, é possível nos ver
dentro da história, fosse também a nossa sendo nós feitos da mesma
essência, quer aqui no Brasil ou no Japão. Mas falava que a
protagonista é formada em letras, com monografia de conclusão sobre
Katherine Mansfield, escritora neozelandesa de contos, e que me fez
pensar o quanto a grande literatura ultrapassa qualquer língua e
país.
Vale
ressaltar também que este não foi o primeiro livro do Murakami que
li. Comecei com Após
o anoitecer,
e foi a certidão de cartório da emissão da carteirinha de fã pelo
Haruki Murakami. Ele é daqueles autores que nos dá o medo de
terminar a vida sem nunca ter lido uma obra dele, e é daqueles que
basta uma obra que o canto da sereia nos leva para dentro de suas
páginas. É o que acontece em Sono,
e é o que acontece em qualquer livro seu, todos publicados aqui no
Brasil pela Alfaguara. Quando descobri que o magnífico é triatleta,
pronto, enlouqueci de paixão, tendo inclusive que pedir desculpa a
sua conje, ops, cônjuge. Em meu interesse gratuito e reflexivo pelo
autor, li o seu Do
que eu falo quando eu falo de corrida
e Romancista
como vocação.
Esses dois de não ficção me permitiram compreender como sua obra
se realiza, como pode alcançar tanta gente, de qualquer idade, mas
sobretudo os jovens. E aqui não sei se é fácil ou difícil, em
tempos como os de hoje, tumultuados de outras opções de
entretenimento, conseguir segurar um leitor em suas páginas.
Minha
interrogação existencial paira no porquê demorei tanto para ler
este livro tão curto, com ilustrações tão conectadas com o
desenrolar da história. Quando o desembrulhei lembro que não passei
da página da dedicatória, vendo no miolo apenas que a diagramação
era muito agradável, a fonte graúda como que para ser lida por
leitores que usam mas ali sem a necessidade de óculos. Sabia que era
do Haruki, o mesmo por quem já tinha uma paixão revelada
publicamente, e por isso o presente. Apesar do título ser Sono,
não era sobre dormir, ou estar de olhos fechados que o livro
tratava. Ao mesmo tempo, pensei: nossa, o Murakami querido escreveu
livro infantojuvenil também, que esperto, não deixa passar ninguém…
e desprezei por isso, guardando na estante por quase um ano. Dizer
que tudo tem sua hora é clichê, mas dizer que no momento certo
seremos arrebatados pelo prazer de uma obra genial, isso pode
acontecer a qualquer momento da vida.
E
é isso o que acontece em Sono,
quando a protagonista percebe que não consegue dormir. Ela começa a
ler por horas a fio, sobretudo nas madrugadas, mas também à tarde,
no sofá da sala, depois que o marido volta pro consultório ou
quando ela retorna da natação. Num momento acontece um estalo em
sua mente atordoada, e se questiona quando foi que leu pela última
vez um livro e para onde foi sua paixão pela leitura. “Mas,
naquela noite, consegui me concentrar na leitura de Anna
Karenina.
Consegui avançar as páginas totalmente absorta na leitura, sem me
distrair.” Acompanhada de uma garrafa de conhaque, de barra de
chocolate ao leite e cookies, lia Tostói com a paciência de só
encontrar a heroína da história, Anna, no capítulo 18, assim como
esperamos pela cama, pelo descansar da protagonista numa referência
direta ao título. “Ao deixar de dormir, ampliei o meu ser. O
importante é o poder da concentração. Viver e não conseguir se
concentrar é o mesmo que estar de olhos abertos sem poder enxergar”.
Sono,
para quem puder ler, é um achado da literatura contemporânea e, por
meio da edição brasileira, uma obra de arte digna de triunfal
entrada no mundo dos que sonham acordados. E falando em literatura
contemporânea, em concisão, o
guatemalteco Augusto Monterroso é apontado como autor do mais famoso
miniconto, escrito com apenas trinta e sete letras: “Quando acordou
o dinossauro ainda estava lá.” Nunca mais fico sem ler aquilo que
pode me modificar, aquilo que, mesmo dormindo noite após noite, vai
continuar como uma tristeza necessária e pregada em sonhos ou
pesadelos, a depender da experiência e maneira de observar a si
mesmo e os que estão a nosso redor. “Será que eu poderia me
considerar um exemplar único, uma precursora da espécie humana, que
deu um salto na cadeia evolutiva? Uma mulher que não dorme. Uma
consciência expandida.”
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Haruki
Murakami nasceu em Kyoto, no
Japão, em janeiro de 1949. É considerado um dos autores mais
importantes da atual literatura japonesa. Sua obra foi traduzida para
42 idiomas e recebeu importantes prêmios, como o Yomiuri e o Franz
Kafka.
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João
Gomes (Recife, 1996) é poeta, escritor, editor criador da revista de
literatura e publicadora Vida Secreta. Participou de antologias
impressas e digitais, e mantém no prelo seu livro de poesia.